A actividade artístico-cultural desde sempre se fez sentir entre os micaelenses de uma forma muito viva, integrando as suas mais diversas formas de expressão. Caminhando por tempos mais recuados da história, são de realçar, sobretudo, os espectáculos de teatro popular, realizados, quase sempre, em recintos ao ar livre preparados para o efeito, como os adros das igrejas ou a própria rua. Mas, também, as danças e cantares, acompanhados por instrumentos rústicos portugueses e por outros recriados localmente, como é o caso da viola da terra, e que em muito contribuíram para o enriquecimento da nossa tradição no que à música folclórica diz respeito.
Mas é, fundamentalmente, a partir da segunda metade do século XIX, e durante as primeiras décadas do século XX, como bem nos dá conta a imprensa da época, que se assistirá, em Ponta Delgada, a uma dinamização, sem precedentes, da actividade artística, embora nem sempre primando pela regularidade. A existência de empresas ligadas ao sector, e o progressivo aparecimento de várias casas de espectáculo de dimensões já consideráveis, como o Teatro Micaelense, o Teatro-Salão Ideal, o Coliseu Avenida (Micaelense) ou, mesmo, o Campo de Jogos do Liceu, testemunham bem a intensa actividade lúdica e artística que, então, ocorria em Ponta Delgada.
No diaporama abaixo, podemos observar imagens do edifício do 1.º Teatro Micaelense, inaugurado em Março de 1864, que viria a ser destruído por um violento incêndio, logo no início da década de 1930. Ocupava o espaço hoje preenchido pelo jardim Sena Freitas.
Estas fotografias integram o acervo de documentação histórica do património (em risco) do Liceu/Escola Antero de Quental
Na página (online) “Música dos Açores”, da Direção Regional da Cultura, da autoria de Isabel Albergaria Sousa, pode ler-se que “o Teatro Micaelense, era um teatro de modelo italiano para espectáculos músico-teatrais, inclusive a ópera, com características arquitectónicas italianas e com um sistema produtivo que inicialmente tencionava ser semelhante ao italiano mas que, por razões de insularidade, se teve de adaptar a todas as circunstâncias. Tornou-se a maior casa de espectáculos dos Açores desde 1864 até 1917 ? data da abertura do Coliseu Avenida ?, apresentando ópera italiana, zarzuela e ópera cómica portuguesa em temporadas que nem sempre se realizavam anualmente (por exemplo entre 1864 e 1900 foram 14). Do repertório italiano destacam-se: Trilogia (Rigoletto, Il Trovatore e La Traviata), Ernani, Un Ballo in Maschera e Luisa Miller de Verdi; La Sonnambula e Norma de Bellini; Il Barbiere di Siviglia de Rossini, Favorita, Lucia di Lammermoor e Lucrezia Borgia de Donizetti. Do espanhol: Jugar con Fuego de Barbieri, Marina e El Dominó Azul de Arrieta, El Juramento e Los Magyares de Gaztambide, e La Tempestad de Chapi.”
Era grande, como se constata, o gosto dos micaelenses, culturalmente mais exigentes, pelos espectáculos musicais (operáticos), sendo que muitos eram assegurados por artistas locais (professores de música) e cantores amadores que, igualmente, satisfaziam o público interessado. Note-se, que nem sempre era possível, por razões várias, a vinda de companhias nacionais ou estrangeiras, as quais, aliás, se deslocavam para temporadas que eram patrocinadas, em boa parte, pelo mecenato local.
Também o teatro popular musicado era muito do agrado, não só da população de Ponta Delgada, mas, também, dos micaelenses em geral. A sátira política e social pontuava como o género mais cultivado e o mais apreciado pela generalidade dos espectadores. Aos espectáculos musicais e ao teatro popular, veio, posteriormente, juntar-se o cinema, que mereceu, igualmente, uma entusiástica adesão por parte do grande público.
Jornal “Açoriano Oriental”, Julho de 1928 (Arquivo histórico, em risco, do Liceu/Escola Antero de Quental)
Saliente-se que a imprensa da altura é animada, não raras vezes, por acesas polémicas relacionadas com os “films” e outros espectáculos em cena nos vários palcos da cidade. Na realidade, na origem das polémicas estão sobretudo juízos de natureza moral, mais do que uma avaliação crítica sobre a qualidade artística dos espectáculos propriamente ditos.
Uma memorável e longa temporada, com “retumbante sucesso”, da Companhia Teatral Rey Colaço-Robles Monteiro, no Teatro Micaelense, nos meses de Maio e Junho de 1927. Jornal “Açoriano Oriental”. ( Do arquivo histórico, em risco, do Liceu/Escola Antero de Quental).
Agnelo Casimiro, director, na década de 1920, do jornal “Açoriano Oriental”, e professor no Liceu, onde também foi reitor, terá sido, porventura, dos primeiros críticos de cinema e de teatro a escreverem, assiduamente, nas páginas de um jornal local. A pronta denuncia dos conteúdos que, de alguma forma, pudessem desafiar os costumes mais conservadores da sociedade micaelense, era uma constante nos seus escritos. Não admira, pois, que alguns dos debates mais acesos fossem, precisamente, transpostos para as páginas do “seu” jornal…
Teatro-Salão Ideal. Construído em 1911 (?) foi, tal como o 1.º Teatro Micaelense, destruído por um incêndio, também, no início da década de 1930. Estas fotografias integram o acervo de documentação histórica do património (em risco) do Liceu/Escola Antero de Quental.
Jornal “Açoriano Oriental, Outubro de 1927. (Arquivo do Liceu/Escola Antero de Quental)
Neste muito concorrido “Salão Ideal”, situado no largo de acesso à entrada sul do Jardim da Lombinha (hoje António Borges), realizavam-se os mais variados espectáculos, dirigidos aos mais diversos gostos (e às algibeiras das classes populares), desde os musicais aos combates de boxe, dos ventríloquos à dança artística, do cinema ao teatro e ao ilusionismo. Também lá se organizavam, frequentemente, eventos particulares, como se pode comprovar pela leitura da notícia que abaixo se transcreve, a propósito da fundação do “Club Desportivo Santa Clara” (Maio de 1927), que bem soube aproveitar as instalações do Teatro-Salão Ideal para assinalar e festejar a efeméride.
Notícia do jornal “Açoriano Oriental” (então semanário) de Junho de 1927. Este número (tal como outros cujas imagens aqui se expõem) integra uma colectânea que reúne os jornais publicados entre aquele ano, e o de 1929 (anos 93.º, 94.º e 95.º – números 4776 a 4904), oferecida ao Liceu pelo Dr. Agnelo Casimiro, enquanto director do referido jornal.
Na já referida página da Direção Regional de Cultura pode, ainda, ler-se, agora com assinatura de Ana Gaipo, que “nas primeiras décadas do século XX, com a abertura do Coliseu Avenida, na ilha de S. Miguel, inicia-se uma nova etapa do teatro popular com música, à semelhança do teatro de revista, tão em voga na capital portuguesa. A modernidade da nova casa de espectáculos permitiu que o teatro popular pudesse comportar proporções cénicas e de representação mais amplas e diferentes das habituais. Data do ano de 1923 a primeira representação de teatro popular musicado no Coliseu Avenida, intitulado Sem pés nem cabeça, em um prólogo e dois actos, com texto de José Barbosa (poeta e jornalista micaelense), música de Evaristo Sousa e cenários de Domingos Rebelo. O êxito do primeiro espectáculo fez com que tantos outros se seguissem como Lanterna mágica (1931), O país da graxa (1940), Manta de retalhos(1942), Aqui, Ponta Delgada (1946), Pé de vento (1947), Toma lá, dá cá (1950), Vai no balão (1951), Bota abaixo (1960), Tento na bola (1963) e Pontos nos ii (1965), com texto de José Barbosa e música de músicos locais como Ilídio de Andrade, Manuel Rui das Neves e Evaristo de Sousa. Contou ainda com Ramo de Hortências (1935) com texto de Victor Cruz e música de Evaristo de Sousa. Eram espectáculos que primavam pela sátira política e social da época, embelezados por melodias que ficavam no trauteio do público.”
Desconhece-se o número de espectáculos realizados em cada um dos anos em que a revista “Lanterna Mágica” foi levada à cena (1923; 1931; 1934; 1936 e 1956). Adaptando-se os textos, os cenários e as músicas às novas circunstâncias sociais proporcionadas pela evolução natural dos tempos, certo é que esta terá sido uma das peças de teatro/revista mais populares de sempre entre os micaelenses.
A “Lanterna Mágica”, exibida já no novo Teatro Micaelense. (Fotografias e documentos do Arquivo histórico do património (em risco) do Liceu/Escola Antero de Quental)
A propensão dos micaelenses para as actividades de expressão artística mantém-se hoje intacta e honra a tradição. Na música, na dança, nos grupos corais e no teatro, é possível já descortinar bolsas de uma qualidade artística capaz de ombrear com o que de melhor se produz no resto do país.
A notável capacidade de dinamização, de organização e mobilização de recursos do Conservatório Regional de Ponta Delgada, dotado de um leque de profissionais e de dirigentes de elevada competência, tem contribuído para os indiscutíveis progressos musicais alcançados entre nós nos últimos anos.
Digna de registo é, igualmente, a forma como o grupo “Coral de São José” soube, paulatinamente, com humildade e espírito de entrega, mas, sobretudo, com muito trabalho, atingir o invejável patamar de qualidade com que hoje se apresenta.
No teatro e nos ecrãs, o génio de Zeca Medeiros e o talento de um punhado de actrizes e de actores que com ele geralmente colaboram, revelam que dispomos de um enorme potencial artístico que, contudo, tarda em colocar-se ao serviço das gerações futuras. Por outro lado, e ainda que detentores da melhor matéria-prima, não deixa de causar alguma estranheza o facto de, entre nós, o teatro tardar em constituir-se como uma actividade regular.
Luís Bastos
Tenha um óptimo fim-de-semana, na companhia das excelentes interpretações que hoje oferecemos a todos os leitores do Azorean Torpor, recorrendo exclusivamente, não à prata, mas ao “ouro da casa”!
Grupo Coral de São José, Coro di Mattadori, de Verdi e,
Zeca Medeiros em Eu gosto tanto de ti que até me prejudico
Um pensamento em “Curiosidades históricas sobre o mundo artístico micaelense”