Pulsões, incompetências e contradições

A PULSÃO PRESIDENCIALISTA

Em 2019, neste meu blogue, publiquei um artigo com o título “Marcelo, um ‘case study'”. Era, basicamente, sobre o estilo inovador que Marcelo Rebelo de Sousa então consolidava em torno da sua imagem e acção políticas. Este upgrade no desempenho das funções do Presidente da República, e findo que está o primeiro ano deste segundo mandato, há que admiti-lo, resultou em pleno. De tal modo que, e se alguma contrariedade séria não ocorrer até ao termo daquele, não haverá Presidente futuro que não tente reproduzir-lhe a performance de tal forma esta ficará impregnada no cargo. Porém, a tarefa não se afigurará fácil uma vez que pessoas, tempos e contextos serão distintos e, como sabemos, o mimetismo, nestas circunstâncias, raramente resulta. Certo é que, no futuro, esta referência presidencial será incontornável e as comparações perdurarão por muito tempo. Mas o que faz mover, verdadeiramente, Marcelo?

À sua personalidade política não servem o recato, a discrição, a actividade política de bastidores e coisas como “magistraturas de influência”, resguardos, gestão de silêncios ou o uso cirúrgico e comedido da palavra. O que caracteriza Marcelo, para o bem e para o mal, é uma forte pulsão presidencialista com tudo o que isto acarreta. Por isso, não lhe serve o fato que o regime semi-presidencialista o obriga a vestir. Rebenta-lhe pelas costuras. Porque quer, sim, dizer o que pensa a toda a hora, publicamente, com o público, em sintonia com este e para satisfação da “vontade geral”. Publicamente, analisa, comenta, expõe metodologias e vias de solução, vantagens e desvantagens, consequências positivas e negativas e, não raras vezes, publicamente, decide.

Talvez o marasmo de um governo cansado de sete anos, ou a agudização da conflitualidade social, com crescente agitação de rua, ao que se junta uma oposição que aos olhos de Marcelo não constitui alternativa credível de governo, ajudem a criar o cenário ideal para o palco onde o actor, Marcelo, melhor se realiza. Só que, estamos em crer, ele faria, exactamente, o mesmo em qualquer outra situação, porque é esse o seu ser. No fundo, não entende outra forma útil de retribuir ao eleitorado o número esmagador de votos que este lhe conferiu senão “governando”, também ele um pouco, ou, pelo menos, fazendo parecê-lo. Para ser Macron, a Marcelo só lhe falta o assento na presidência do conselho de ministros. Mas para quê?

Concluindo, e dado que tanto a personalidade como a robusta legitimidade popular não se traduzem em poder de facto, neste caso peculiar, e recorrendo à ciência, por sublimação da pulsão deve entender-se aquilo que, em Portugal, é comum designar-se por “estilo Marcelo”.

UM PAÍS PARALISADO PELA INCOMPETÊNCIA DE UM GOVERNO

Primeiro com “geringonça”, depois com maioria absoluta (e já lá vão sete anos), não me lembro de outros governos cujas controvérsias e hesitações no seu seio tivessem levado o país a uma paralisação ou, mesmo, a retrocessos (insanáveis?) por um tão longo período de tempo. A única razão para muitos descortinável reside na obsessão do PS pela conquista do poder, e para nele se conservar custe o que custar. Há já algum tempo, ali pelo Renascimento, alguém na Europa terá exagerado (apesar de ter feito escola em ciência política) ao afirmar que era este, afinal, o objectivo de todo e qualquer governo… Seja como for, na verdade, nem um local para construir um aeroporto, nem o desenvolvimento da ferrovia, nem um destino final para uma companhia de aviação. Zero! Ah, e nem tampouco, com o descongelamento das carreiras na função pública, foi recuperado, integralmente, o tempo de serviço dos funcionários. Numa recente grande entrevista a um canal de televisão, o Presidente da República “mandou” o governo proceder àquela recuperação, de forma faseada. Veremos como o governo acatará mais esta “decisão”.

Os portugueses acomodaram-se a viver na austeridade que desde os tempos de Passos & Troika se instalou entre nós. E nem agora, com o país de cofres cheios, ao que dizem, o governo alivia o fardo ao povo. Pelo contrário, as reformas estruturais em sectores sociais tão vitais como a educação ou a saúde é o que se vê, a “geração mais bem preparada de sempre” (uma ideia, aliás, peregrina) emigra, o empobrecimento galopa e a fome alastra. Quanto à execução da “bazuca”, nem se fala. E ainda haverá quem se lembre da “Grande Universidade do Atlântico”, com sede nos Açores, proposta aquando da elaboração do PRR pelo, agora, ministro da economia? O problema deste governo é, tão só, a de uma gritante incompetência.

CONTRADIÇÕES

A publicitação das conclusões de uma investigação realizada por um idóneo e competente grupo de cidadãs e cidadãos sobre a possível existência da prática do crime de abuso sexual de menores cometido por membros do clero da Igreja Católica chocou a sociedade portuguesa. Resultando numa lista de padres sobre quem recai a forte suspeita da prática daqueles crimes, um unânime e veemente repúdio veio do Presidente da República, dos partidos políticos, sem excepção, e dos mais diversos quadrantes da sociedade civil.

Aquela «Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa» deu a conhecer, aos mais altos responsáveis da hierarquia do clero, e ao Ministério Público, uma lista com o nome dos padres suspeitos e das respectivas dioceses. Naturalmente, logo foi colocada a questão da necessidade de suspensão dos padres, como medida preventiva à qual, até, convidava o simples bom senso. Mas, neste ponto, já as opiniões na igreja se dividiram. Assim, enquanto parece existir um consenso social generalizado a favor da suspensão, no seio do alto clero pairam as dúvidas e a divisão, incluindo por parte do Cardeal do Patriarcado de Lisboa, D. Manuel Clemente (vencedor do Prémio Pessoa 2009).

Que razões estarão subjacentes à posição de D. Manuel Clemente?

Até agora, e para espanto de muitos, dado o sentimento que a suspeita do crime hediondo causa, não só muito poucos foram os padres (constantes da lista) suspensos como se ficou a saber que, pelo menos, um sacerdote condenado por crimes deste tipo continua no exercício de funções.

E tudo isto se torna mais complexo quando o próprio povo da igreja, junto a uma paróquia, se manifesta, efusiva e agressivamente, contra a “injusta suspensão” do seu pároco suspeito de praticar crimes contra crianças. Disto mesmo ainda há poucos dias nos dava conta um canal nacional de televisão.

Será a imprudência dos que teimam em não concordar com a suspensão dos padres apenas aparente? Isto é, conhecendo o seu povo melhor do que ninguém, será que, para além das mais óbvias, uma das razões subjacentes à não suspensão dos padres suspeitos se prende com receios de protestos em catadupa por essas dioceses fora?

Luís Bastos