Liceu/Escola Antero de Quental: algumas preciosidades de um património em risco (1)


Títulos do Paço 1829, 

Adquiridas estas propriedades por Jacinto Ignácio Rodrigues da Silveira em 6 de Novembro de 1829.

Começaram a demolir em 7/11/830.

Findaram as obras em 16/11/839.

Custaram  Rs. 75. 886. 015

Isto é o que se pode ler na capa que envolve um vasto conjunto de documentação relacionado com os actos administrativos de compra e venda dos terrenos, e das casas,  onde viria a ser edificado o Palácio Fonte Bela (também referido como Paço do Barão da Fonte Bela).

Esta preciosidade (imagem 1) é, certamente, o documento mais antigo relacionado com o edifício onde funciona a Escola Secundária Antero de Quental.

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1.

 


 

livro de registo de despesas construção do Palácio Fontebela
2.

Neste livro (imagem 2), com cerca de 350 páginas, registaram-se os nomes dos homens que trabalharam na construção do Paço e respectivos salários, bem como, de forma minuciosa, se anotaram as despesas efectuadas com a aquisição de todos os materiais (muitos destes importados) necessários à concretização da obra. 

custo da obra do Paço
3.

Numa das últimas páginas do livro, o montante correspondente ao custo total da obra.

 


 

Joãp Jopsé do AmaralJá aqui se fez referência ao valioso património cultural que o Liceu/Escola Antero de Quental alberga, bem como a alguns problemas decorrentes da indefinição que paira sobre o modo de gestão mais adequado a um espaço que, sendo escola, é, simultaneamente, um importante núcleo museológico. Releve-se que estamos perante um conjunto de acervos resultante de aquisições e doações de equipamentos diversos, de obras de arte, e de livros que abarcam um vastíssimo leque temático e de autores há muito consagrados. Funcionando há 166 anos, a escola possui, ainda, um monumental arquivo (à escala de um estabelecimento de ensino) e um espólio documental, também, de uma considerável dimensão e inegável importância histórica.

 A escola lá vai recolhendo e organizando, com amadorismo, o seu património, na convicção de que assim contribui, apesar de tudo, para a salvaguarda daquilo que é, afinal, pertença de todos, e que, um dia, terá, certamente, tratamento à altura do seu valor, bem como uma  apropriada e merecida divulgação pública. Note-se que não existem medidas implementadas de segurança contra incêndios, humidade, térmitas, ou qualquer outra que vise a conservação e o conveniente resguardo dos vários acervos.


 

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4.

Outra preciosidade é este primeiro livro de correspondência oficial do Liceu de Ponta Delgada, de onde destaco (na imagem 4) o primeiro ofício, datado de 16 de Março de 1852 e assinado pelo Pe. João José do Amaral (Água de Pau, 1772 – Fajã de Baixo, 1853). Nele informa da sua nomeação para o cargo de Comissário dos Estudos do Distrito de Ponta Delgada, por Decreto de 2 de Setembro de 1851, de Sua Majestade a Rainha D. Maria II. O cargo tinha sido desempenhado, anteriormente, por António Feliciano de Castilho.

O professor de Filosofia e Retórica, na qualidade de Comissário dos Estudos, escreve o Pe. Ernesto Ferreira, na Revista Micaelense de Junho de 1921, “teve de organizar o Liceu e para isso reuniu no dia 23 de Fevereiro de 1852 os professores, que deviam compor o corpo docente, distribuindo-se as cadeiras e sendo eleito Reitor o Padre Amaral, sob cuja direcção, tão curta como esclarecida prosperou o novo estabelecimento, cujas aulas funcionavam no Convento da Graça, onde os Agostinhos, antes da extinção das ordens religiosas professavam Artes e Teologia. (…)

 Foi membro da Comissão incumbida de elaborar o plano para a fundação da Biblioteca   Pública de Ponta Delgada, que foi solenemente aberta em 11 de Janeiro de 1843; (…) Foi   um dos fundadores da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense (1843); (…) Fez o   Padre João José do Amaral parte da Comissão encarregada de estudar o processo de   extinguir o insecto destruidor das laranjeiras.”


 

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João de Morais   Pereira

Moraes Pereira 2VénusAtestado médico

manchas solaresMoraes Pereira 1 João de Moraes  Pereira, Ponta Delgada (1855-1908), foi um autodidacta, professor de inglês no Liceu Antero de Quental, e um dos mais brilhantes astrónomos portugueses do século XIX. Os seus trabalhos científicos, relacionados com as suas observações astronómicas, foram publicados em várias revistas estrangeiras da especialidade, como L’Astronomie; Journal of the British Astronomical  Association e  Annals of Harvard  Observatory College. 

Foi membro da Societé Astronomique de France, e o primeiro sócio português da British Astronomical Association. Foi colega, enquanto professor do Liceu, de  Francisco Afonso de Chaves com quem terá, certamente, privado e dialogado, sobre astronomia e outras matérias de relevante interesse científico para a época, não sendo, mesmo, de excluir a influência de Chaves no despertar do interesse de João Moraes Pereira pela observação dos astros.

Desenhos MP
5.

Os desenhos acima inseridos integram um álbum (imagem 5), contendo 195 desenhos originais efectuados por Moraes Pereira, representando alguns dos astros observados e estudados (sobretudo entre 1892 e 1908), como o Sol (manchas) e vários planetas (Vénus, Marte, Júpiter, Saturno). Esta preciosa colecção foi doada, pela sua família, ao Liceu, bem como o refractor  “Bardou com 108 mm de abertura”, o único telescópio utilizado pelo ilustre professor e astrónomo nas suas observações.

Telescópio II
O telescópio  utilizado por João de Moraes Pereira,  preciosidade  do património do Liceu/Escola Antero de Quental

 


 

Os termos em que se encontra escrito este “atestado médico”, apesar dos seus  135 anos, assemelham-se, incrivelmente, aos dos nossos dias, muito embora, com a evolução das  ciências médicas, a designação da “doença” tenha caído em desuso! Ou não? Seja como for, certo é que esta “nevrose geral febril”, como abaixo se pode ler, diagnosticada pelo “Guarda-mór da Estação de Saúde de Ponta Delgada”, justificou a “fuga” a uma data muito pouco agradável na vida de um estudante…

 

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Luís Bastos

 

Cerca de vinte anos antes do início da construção do Paço do Barão da Fonte Bela, a  obra- prima de Beethoven, Concerto para Violino, Violoncelo e Piano, também conhecida por Triplo Concerto, estreava-se na cidade de Viena, em 1808. Vale a pena, pois, ouvir!

A orquestra é a Filarmónica de Israel conduzida pelo famoso Maestro Zubin Mehta.

Bom fim-de-semana, com boa música!

 

 

 

 

Matadouros e labirintos

Hegel, filósofo alemão (1770-1831), definia a história como um imenso matadouro. A da Europa, ou seja, a história do velho e afamado berço da “civilização ocidental” não escapa a esta definição tão cruel quanto realista. Porém, ela foi, também, capaz do melhor que os homens criaram, desde a filosofia à ciência e tecnologia, da arte à democracia e aos direitos humanos. Estas realizações foram acontecendo em tempos de paz, alternados com outros de violência extrema, tendo esta origens diversas, como as divergências religiosas, o revanchismo, os interesses económicos, ou as ideologias políticas. Mas o que o mundo é, hoje, para o melhor e para o pior, deve-o, em boa  parte, aos caminhos trilhados no seio desta Europa, outrora senhora da sua supremacia, quer na terra, quer nos “céus”, culturalmente etnocêntrica, exportadora dos “valores ocidentais” que teimou em impor à força, e com algum sucesso, diga-se, por via das colonizações e dos impérios construídos.

biblioteca

Contudo, desde a última carnificina (1939-1945), o “Ocidente” (europeu) viveu, apesar de tudo, tempos de paz e de progresso, sob a capa protectora do “amigo americano”, em tempos de guerra fria, embora com as conhecidas excepções dos países ibéricos. Respirou-se liberdade num quadro de democracias representativas, onde acesas disputas entre partidos, dos mais diversos quadrantes ideológicos e tendências, geravam dinâmicas políticas e sociais portadoras de esperança numa vida melhor para as populações, e incutiam nos cidadãos a crença profunda nas virtudes da democracia. Com a queda do muro de Berlim, a democracia e a liberdade alargaram-se a muitos outros países, permitindo-os embarcar no velho sonho kantiano de uma “paz perpétua”, só possível numa Europa de estados de direito, livres e democráticos, económica e socialmente solidários. De facto, e até prova em contrário, não há memória histórica de guerras entre estados democráticos. A democracia tem sido, pois, o garante da paz e, por isso, ela vale a pena, por maiores que sejam, e são, as suas imperfeições.

Mas um cidadão europeu, atento, não pode deixar de manifestar profunda preocupação com o livre avanço de movimentos ideológicos organizados, legitimados por um crescente apoio popular, e que, hoje, semeiam a intolerância por todo o espaço europeu. A alternativa, de que se afirmam portadores, só aparentemente o é, pois mais não faz do que recuperar as velhas teorias limitativas dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

Xenofobia, racismo e anti-semitismo são exemplos de preconceitos que regressaram de forma surpreendente e que, há mais tempo do que se poderia pensar, constituem temas recorrentes de debate, integrando, mesmo, a programação das televisões, em prime time, de muitos dos países da União Europeia. As questões que a imigração e os refugiados levantaram (e levantam) à Europa, permitem darmo-nos conta da dificuldade dos seus estados membros na resolução de problemas, cujo jaez excede o âmbito do que é, estritamente, económico e financeiro. De facto, há muito que o poder político se vergou à vertigem do capital e do lucro desenfreado, não olhando a meios para atingir fins. A defesa e a afirmação  dos  valores matriciais que, afinal, justificavam a construção de uma Europa unida, de paz, prosperidade e justiça, vacilam de forma assustadora, sem que se possa antever, para já, uma reacção firme de oposição.

Bem pelo contrário, é perturbante a sanha euro-céptica e nacionalista, bem como as fortes ameaças à democracia que se vão conhecendo (e entre outros), em países como a Hungria, de Viktor Orbán, ou na Itália, de Salvini; ou, mesmo, em França, onde reina um poder atípico, como é o “macronismo”, fruto de alianças pouco ortodoxas e de lutas intestinas entre partidos frustrados pela incapacidade de se livrarem da sombra ameaçadora de Marine Le Pen. Tudo isto, a decorrer em paralelo com o surpreendente e conturbado processo “Brexit” e os anúncios de despedida da chanceler Angela Merkel, ao que se acrescenta a forte possibilidade de nova crise económica, a curto prazo, que Centeno e Mortágua se encarregaram já de anunciar, durante a apresentação do Orçamento para 2019.

Fascismo

“O calcanhar de Aquiles do projecto europeu é o facto de ele ter sido sempre uma iniciativa de cima para baixo”; “O nosso receio é que a alienação em relação ao projecto europeu continue a crescer”. (Da obra, em epígrafe, de Madeleine Albright,  2018. Foi nomeada, em 1996, Secretária de Estado dos Estados Unidos da América, pelo Presidente Bill Clinton, tendo sido a primeira mulher a exercer este cargo).

 

É claro que há muito de interessante e divertido para comentar e analisar sobre o, agora, “inimigo americano” Trump, ou sobre o lusófono Bolsonaro, figuras que têm o seu poder legitimado, pelo povo, nas urnas. Torna-se, no entanto, urgente um olhar mais atento e sério sobre estes novos tempos tão propícios ao aparecimento de dirigentes de tendências totalitárias, na própria Europa, como são disso exemplo Orbán e Salvini.

Seja como for, certo é que a Europa vive, actualmente, na angústia de um impasse no que respeita ao seu rumo histórico, o que se fica a dever à profunda crise que se instalou, há muito, na forma clássica de governação democrática dos povos. A faltar-lhe a arte e o engenho para se colocar à altura das exigências ditadas pelos novos paradigmas estruturadores da vida, nas sociedades contemporâneas, a democracia, pelo menos tal como, hoje, a concebemos, colapsará.

Norberto Bobbio, filósofo italiano (1909-2004), construiu, sobre a condição humana, a “metáfora do labirinto”, e que consiste, mais ou menos, no seguinte: acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais os caminhos que não levam a lugar algum.

Torna-se, portanto, necessário saber se os europeus se renderam, definitivamente, à pessimista metáfora de Bobbio, ou se ainda vão a tempo de resistir à queda no labirinto, refutando, deste modo, a definição de história de Hegel.

 

Luís Bastos

 

A escolha musical de hoje recai sobre o génio europeu que é Beethoven. Oiçamos, então, uma “animada” versão do 1.º andamento da sua  Sinfonia nº 5.