Revisão da Lei das Finanças Regionais: entrada de leão, saída de sendeiro

Nos Estados com regiões autónomas é natural a tensão que caracteriza as relações entre os governos centrais e os regionais, como aquela que é vivida por nós. Por isso, e no que respeita ao tratamento de assuntos mais sensíveis, como é o caso dos financeiros, exige-se que tenhamos capacidade técnica, sim, mas, sobretudo, habilidade negocial e argúcia política.

A estas sempre delicadas questões financeiras, tão essenciais e até decisivas para o equilíbrio e a coesão sociais, bem como para o desenvolvimento das comunidades autónomas em geral, está frequentemente associada uma acentuada complexidade técnica de natureza jurídico-constitucional. Assim, estas matérias, quando lançadas no espaço público tendo em vista debater uma lei como é a das finanças regionais, cuja revisão, de momento, apenas se coloca em termos de previsão, passam a revestir-se de um elevado melindre, e a prudência aconselha que a primazia seja dada ao poder político. É, principalmente, nesta esfera, e não noutras, que os problemas decorrentes dos novos contextos políticos e socioeconómicos são devidamente acompanhados, analisados e discutidos em primeira instância, seguindo-se os trâmites institucionais normais de auscultação das diversas entidades, onde agora pontifica o vetusto e omnipresente Conselho Económico e Social dos Açores.

Ora, inverter estes papéis, como parece ter acontecido com a iniciativa de uma conferência que decorreu esta semana no Teatro Micaelense sobre a revisão da Lei das Finanças Regionais, foi incorrer num erro que deveria e poderia ter sido evitado. Mas o desusado protagonismo a que o CESA nos tem habituado, raiando até um pretenso estatuto de “governo sombra”, bem como uma independência nem sempre clara em relação aos poderes instituídos, arrastou os órgãos de governo da Região – e até outras individualidades que têm vindo, com o seu reconhecido saber e competência, a assessorar juridicamente o Governo Regional nestas matérias – para um palco com cenário tão impreciso quanto aos objectivos como desajustado na forma, nos conteúdos e no timing.

Como resultado, temos que as divergências entre as regiões insulares portuguesas sobre a dita Lei, e para gáudio do centralismo, terá sido, quiçá, a nota mais sonante que daquele evento conseguiu sair para o grande público.

Detalhe do painel “Guerra”, da obra “Guerra e Paz”, de Cândido Portinari (São Paulo,1903 – Rio de Janeiro,1962)

Mandam o bom senso e o sentido de oportunidade que as instituições políticas regionais evitem embarcar e envolver-se em iniciativas que podem, de alguma forma, acabar por fragilizar e comprometer o poder negocial (que já é curto) de quem um dia vier a sentar-se à mesa das negociações para a revisão (se tal vier a acontecer…) da tão importante Lei das Finanças Regionais. Nestas coisas, e como já todos sabemos, há ocasiões em que mais vale uma estratégia assente em discreto e prudente resguardo do que arriscar um tiro no pé.

Por outro lado, a situação mundial razoavelmente instável e perigosa, com a guerra na Europa, agora, a ditar um ainda mais imprevisível futuro próximo, a prevista subida da inflação e dos juros, bem como a crise económica que se agudizará em consequência da pandemia, aconselham-nos a combater amadorismos, de modo a evitarem-se eventuais humilhações às mãos dos tecnocratas que em breve assaltarão o Terreiro do Paço, bem estribados e insuflados pelas sempre arrogantes e absolutas maiorias.

Luís Bastos

Entrevista ao Jornal Letras Lavadas

Foi agora publicada no jornal da livraria Letras Lavadas uma entrevista que concedi a Patrícia Carreiro, sua dinâmica directora, a propósito da Fotobiografia de João Bosco Mota Amaral de que sou autor e que vai já para segunda edição. Boas notícias, pois. É, assim, com muito gosto que o Azorean Torpor partilha a entrevista com os seus seguidores e leitores em geral.

Patrícia Carreiro

Mota Amaral “é o único revolucionário da História dos Açores”

Quem o diz é Luís Bastos, em entrevista ao jornal Letras Lavadas, aquando da edição da Fotobiografia de João Bosco Mota Amaral. O livro já segue para a segunda edição, com chancela das Letras Lavadas, tal foi a sua procura. O projeto nasceu há quase um ano, em fevereiro de 2020, e o autor garante que o principal objetivo deste livro é “divulgar o pensamento e a ação de um político com a envergadura de João Bosco”.

Muitos factos o surpreenderam, principalmente na “autorização de livre acesso a toda a documentação do arquivo pessoal depositado na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada sem limitações(…)”.

São várias as curiosidades patentes nesta entrevista, pelo que só tem de nos acompanhar nesta leitura para as conhecer!

> Que temas mais gostou de tratar para realizar este livro e porquê?

Na verdade, interessei-me por todos eles, visto que resultam de uma seleção que fui fazendo durante os trabalhos de investigação e de consulta dos documentos existentes no seu enorme arquivo e que considerei apropriados para a elaboração desta fotobiografia. Para a realização de um livro desta natureza, pode, de facto, partir-se das perspetivas mais diversas. Propus-me atingir um objetivo muito simples: divulgar o pensamento e a ação de um político com a envergadura de João Bosco. Escolhi, para este efeito, as fases que me pareceram mais significativas do seu longo percurso político e que mudaram, radicalmente, a face dos Açores e a vida dos açorianos como em nenhum outro período, desde o povoamento. Ele é o único revolucionário da História dos Açores.

Dei, também, especial enfoque à sua destacada participação política de âmbito nacional, desde os mandatos como Deputado à Assembleia Nacional e à atividade na “Ala Liberal”, passando pelos trabalhos decisivos para o futuro dos Açores que desenvolveu enquanto Deputado à Assembleia Constituinte e, mais tarde, à Assembleia da República, até à sua eleição e desempenho do cargo de Presidente da Assembleia da República.

Como se sabe, a sua carreira política não se quedou por ali, pois veio a cumprir mais mandatos como Deputado à Assembleia da República. Hoje, desenvolve intensa participação cívica e política como docente da Universidade dos Açores e como responsável por uma coluna semanal na imprensa local. Assim, muito possivelmente, outras fotobiografias, estudos e, mesmo, biografias, surgirão no futuro, já que matéria substancial relacionada não só com o passado, mas também com a marcha da história em curso, e de que Mota Amaral continua a ser agente ativo, não faltará para tratar. Aliás, existe já um interessante estudo académico, dissertação de mestrado, da autoria de Filomena Ferreira, realizado na Universidade dos Açores.

> Sendo amigo do Dr. Mota Amaral há muito tempo, de que forma este livro mudou a sua visão sobre ele?

No substancial nada mudou, tudo se confirmou. Muito embora, devo dizê-lo, e apesar da amizade a que se referiu, não ter deixado de me surpreender com a autorização de livre acesso a toda a documentação do arquivo pessoal depositado na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada sem limitações, incluindo a parte que, pela legislação em vigor, só poderá ser tornada pública daqui a muitos anos.

> Além de uma fotobiografia, este livro é um contributo para a História dos Açores. É uma honra ser o seu autor?

Este trabalho pode, pelo menos, constituir um guia para investigações e aprofundamento de estudos sobre os Açores e o país no último meio século. Mesmo que seja só por isto já valeu a pena tê-lo feito.

> A 1ª edição esgotou rapidamente. Na sua opinião, isso significa que as pessoas queriam conhecer melhor o Dr. Mota Amaral ou que queriam ter em casa um álbum do ícone da nossa Autonomia?

Os açorianos que simpatizam com a figura do homem e do político têm, obviamente, todo o interesse em ler o livro para melhor conhecerem a sua obra. Mas penso, também, que os açorianos em geral, qualquer que seja o quadrante político da sua preferência, terão a perceção de que se trata de alguém entre os seus maiores e que, deixando nos Açores uma obra assinalável, a sua memória jamais a História poderá apagar. Há, ainda, o fator geracional, que consiste nos muito milhares de pessoas que viveram, muitos deles ativamente, o tempo, ou parte deste, para que remete esta fotobiografia de João Bosco Mota Amaral. Restam, ainda, todos os outros para quem a História dos Açores é alvo de interesse.

Finalmente, e para completar a resposta à sua pergunta, sim, também há os que, tendo bom gosto, compram o livro para o colocar na mesa da sala junto ao sofá como peça ornamental. Diga-se, em abono da verdade, que o livro, quer pelo design, quer pelo seu aspeto gráfico, é muito bonito! Assim, e tudo isto somado, não me admira que a primeira edição tenha esgotado rapidamente…

> O que lhe têm dito os leitores sobre este livro?

João Bosco Mota Amaral afirmou, em público, ter ficado muito agradado com a fotobiografia, e isso deixa-me satisfeito. De resto, devo dizer-lhe que não encomendei qualquer sondagem! Quanto aos familiares e a alguns amigos, compreendem-se bem os encómios. Há, no entanto, duas pessoas que escreveram e publicaram sobre o livro na imprensa local: o Professor José Luís Brandão da Luz, que, aliás, o apresentou na cerimónia pública do lançamento, no Teatro Micaelense, e o jornalista Santos Narciso, no jornal “Atlântico Expresso”. Apesar de constituírem dois excelentes textos, acho que aqui houve generosidade a mais.

Patrícia Carreiro (Letras Lavadas – Literatura em Revista, Janeiro de 2022)

NOTA: Algum tempo após ter dado esta entrevista, Nuno Costa Santos, na sua “Crónica de um Passageiro Localizado”, publicada no jornal “Diário dos Açores” do passado dia 10 de Fevereiro, referiu-se, também de forma generosa, à Fotobiografia.

Perigos que espreitam

Agnés Baillon, 2011

É verdade que eleições nacionais não são eleições regionais e, por isso, as motivações do eleitor açoriano, para umas e para outras, são muito diferentes. Por outro lado, e para boa parte dos eleitores açorianos, ter uma percepção clara, nos dias que correm, da real importância que têm os seus deputados na Assembleia da República não é tarefa fácil, e dizer-se que lá estão para defender os interesses dos Açores e dos açorianos é demasiado óbvio e, simultaneamente, manifestamente insuficiente.

De facto, matérias que envolvem os interesses dos Açores e que são da competência da Assembleia da República, ainda que de grande importância se revistam, são, amiúde, demasiado técnicas e carregam um grau de complexidade por vezes difícil de digerir pelos próprios deputados. Daqui que sejam pouco discutidas nas campanhas eleitorais. Tais são os casos, por exemplo, da revisão da Constituição e da Lei das Finanças Regionais, que vai acontecer nesta legislatura, da relação da Universidade com a respectiva tutela, em Lisboa, da base de lançamento de satélites na Malbusca, ilha de Santa Maria, da exploração do mar profundo, das questões em torno do futuro da base das Lajes, na ilha Terceira, ou o berbicacho, longe de estar resolvido, dos solos ali contaminados.

Contém uma imagem do Pin Mask sculpture

Não admira, pois, que, na maioria dos casos, salvo honrosas e raríssimas excepções (que as houve), acabem os nossos representantes na República por serem “porta-vozes” do governo dos Açores e das suas directrizes políticas, em consonância, ou não, com as posições dos outros deputados eleitos pelo mesmo círculo. Refira-se, ainda, que questões desta natureza mais delicada são também alvo de debate e tomada de posição por parte do Parlamento regional e de conversações directas entre os governos regional e da República. Quanto a outros importantes sectores, como as pescas ou a agricultura, e uma vez que a palavra de Bruxelas é, nestes domínios, preponderante, os deputados em Lisboa, igualmente, pouco podem fazer. Restam os deputados ao Parlamento Europeu que, no passado, e nestas matérias, sempre se envolveram, intervindo, activamente, nas campanhas eleitorais regionais e nacionais para ouvir, esclarecer e tentar resolver. Hoje, infelizmente, quer por infausto e penoso acontecimento próprio da vida efémera, quer por inqualificável discriminação política do PSD, então de Rui Rio, em relação aos Açores, com a complacência interna encapotada de alguns muchachos(as), certo é que até a representação parlamentar europeia perdemos. Resta-nos continuar a sonhar com um círculo eleitoral próprio nas eleições para o Parlamento Europeu!

Significado dos sonhos: como interpretar seus sonhos? - greenMe
O amor e o sonho, querida,
são graças que Deus nos deu…
Quem não ama não tem vida,
quem não sonha já morreu.
(José Lucas de Barros)

Muitos açorianos talvez tendam a encarar, hoje, as eleições legislativas nacionais como um dever de cidadania exercido em prol de conceitos algo ambíguos como os de “continuidade territorial”, “coesão nacional” ou até como uma oportunidade de reavivamento e enaltecimento de sentimentos pátrios, mais do que, e ao contrário de todos os outros portugueses, um meio de fazer progredir a sua terra e de resolver os seus problemas mais prementes. O próprio envolvimento dos partidos políticos nas campanhas eleitorais nacionais está longe de exibir o entusiasmo e o esforço de mobilização do eleitorado que se verificam nas regionais, o que pode, igualmente, contribuir para o elevado número da abstenção. O desconhecimento dos candidatos a deputados à Assembleia da República pelo eleitorado será porventura outro contributo para os níveis de abstenção. Excluindo os militantes informados e empenhados ou os jornalistas da nossa imprensa/comentadores da RTP-A, seria interessante apurar junto do eleitorado micaelense, por exemplo, quem conhece o segundo candidato a deputado eleito pelo PSD…

Mas se acaso este fenómeno da abstenção ocorrer um dia em eleições regionais, com a toada dramática com que impregnou estas últimas eleições legislativas nacionais (63,3%), que se cuidem, então, mais do que os partidos e os políticos, a Autonomia e o povo dos Açores, sobretudo aquelas franjas que, por sempre terem vivido em Autonomia, estão longe de imaginar o que seriam as suas vidas e o futuro dos seus filhos sem ela. Observe-se, a este propósito, o elucidativo quadro da PORDATA, que abaixo se reproduz, com a evolução dos números da abstenção (em percentagem) nas eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.

 197632,5
 198023,9
 198437,6
 198841,2
 199237,6
 199641,0
 200047,0
 200444,3
 200853,3
 201252,1
 201659,2
 202054,6

Fontes/Entidades: Governo dos Açores, PORDATA
Última actualização: 2020-10-26

Mas poderá tal hecatombe acontecer nos Açores? Isto é, podem os açorianos voltar costas à Autonomia? Em termos de desenvolvimento global, a manterem-se as situações de estagnação, de impasse e até de retrocesso em alguns casos, nos planos social e económico, aconselha a prudência política que não deve ser afastada a possibilidade de nos depararmos, a curto ou médio prazo, não com o fim da Autonomia (pelo menos para já), mas com um forte abalo na sua legitimidade política, por alheamento e desinteresse em mantê-la viva e credível, através dos únicos dois meios que a tornam possível: o progresso e o voto do povo. Ora, apesar dos muitos milhões de euros há anos a inundar-nos e que em breve, por via do PRR e do novo QCA/PO (FEDER e FSE), serão reforçados em quantidade sem precedentes, a eventual permanência da Região em índices miseráveis de desenvolvimento, sobretudo nos sectores sociais, e que nos atiram para a cauda da cauda da Europa, deve merecer da sociedade civil em geral, dos responsáveis políticos e dos cientistas sociais uma séria e urgente reflexão.

E, a propósito, será talvez tempo de se colocar um ponto final na confusão, neste clima de desorientação que paira nas hostes tecnocratas locais, e não só, que trataram de (quase de assalto) tomar conta da gestão do PRR e dos outros fundos europeus que em breve arribarão. Técnicos, especialistas, tecnocratas de academia, banqueiros, ex-banqueiros (soltando lágrimas pelo alastramento da pobreza!), empresários em “guerra civil” e outros, ainda, com assento consolidado na praça económica e financeira e “ligações perigosas” a importantes sectores institucionais. Depois, as comissões: para acompanhar, para fiscalizar, para seleccionar concorrentes, para gerir o bolo, distribuir fatias, para aconselhamento técnico, etc., etc…

Tudo isto é motivo de preocupação porquanto levanta suspeitas, gera um ambiente de mal-estar e de desconfiança, acabando por arrastar o governo no caudal, não o poupando a responsabilidades.

Existe ainda a ideia muito generalizada de que um governo tem de ser constituído por especialistas das áreas pelas quais são responsáveis. Chama-se a isto um governo de tecnocratas, e não tem de ser necessariamente assim, salvo um ou outro caso mais específico. Um governo é composto por políticos que gizam políticas orientadoras globais, visando alcançar objectivos políticos de progresso e bem-estar a todos os níveis. Aos tecnocratas, aos especialistas sectoriais da administração pública, que se querem competentes, caberá ouvi-los, sim. Mas os decisores serão sempre os políticos.

Urge, pois, travar esta escalada pela assimilação, em marcha, do poder político pela tecnocracia neo-liberal cega e suas ramificações. Da mesma forma que se torna urgente descentralizar, sim, mas impedir a crescente e nefasta pulverização de poderes.

O Presidente José Bolieiro, principalmente nos últimos dias, parece ter tomado boa nota dos perigos que espreitam. Mostrou-se mesmo consciente da necessidade de ajustamentos e reestruturações, tendo em vista, não só a reafirmação da identidade do poder social-democrata nos Açores, mas também a enorme responsabilidade política que lhe pesa sobre os ombros: a oportunidade, quiçá única e que agora se abre com a ajuda dos fundos europeus, de, finalmente, e com políticas eficazes, os Açores serem resgatados dos índices de desenvolvimento que fazem corar de vergonha a Autonomia, porque não fomos capazes de o fazer durante o último quarto de século!

Luís Bastos