Refúgio na Arte (3)

A Deposição, Jacopo da Pontormo (1494-1557)

Jacopo da Pontormo, A Deposição, Capela Capponi, S. Felicità, Florença, 1525-1528: é uma das mais ambiciosas pinturas da época e que dá um rosto preciso ao rótulo, de outro modo vago, de “maneirismo”. Pontormo retrata-se como o homem de barba, atrás, à direita, que olha dolorosamente para dentro de si mesmo.

A imagem do Cristo morto e chorado pela sua mãe é aquilo que ele, Pontormo, e apenas ele, vê mentalmente. As harmonias de cor ímpares e a lenta dança de membros e vestes indicam que as aparências naturais exteriores são aqui irrelevantes. A pintura foi espiritualizada. (Julian Bell, 2009)

Passagem do filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, Estados Unidos, 2004

Acima, a fotografia vencedora do World Press Photo 2022, na categoria de fotografia de imprensa, da autoria de Amber Bracken, para o The New York Times, tirada nos terrenos da Escola Residencial Kamloops, em British Columbia, no Canadá: uma fila de vestidos vermelhos pendurados em cruzes de madeira, ao longo de uma estrada. A imagem retrata uma homenagem às crianças que morreram na instituição, criada no séc. XIX, para assimilar crianças indígenas. Em maio de 2021, uma investigação recorreu a um radar de penetração no solo e identificou até 215 possíveis corpos de crianças enterrados nos terrenos da escola, confirmando relatos de histórias orais sobre crianças desaparecidas e valas não identificadas. (Ana António, TSF, 07 Abril, 2022)

Luís Bastos

Refúgio na arte (2)

Lasar Segall

O pintor, escultor e gravurista Lasar Segall nasceu em 1891, em Vilnius, capital da Lituânia, que então integrava o Império Russo. Faleceu em São Paulo, Brasil, em 1957, onde se havia radicado (1923), juntando-se a parte da sua família que emigrara para aquele país. Estudou e viveu na Alemanha e nos Países-Baixos e foi influenciado, primeiro, pela corrente do impressionismo e, mais tarde, pelo expressionismo. Mesmo já vivendo no Brasil, por diversas vezes cruza as margens do Atlântico, permanecendo na Europa por períodos mais ou menos longos, onde realiza exposições em importantes areópagos da arte europeia.


Lasar Segall, Refugiados, 1922

“Nas cabeças descomunais, nos olhos esbugalhados pelo medo, nos lábios contraídos pela dor, nas mãos minúsculas, há como que a aparição de um mundo fantasmal. Eliminada a aparência objectiva e exterior das coisas, a força da linha e a sombria ressonância das cores transmitem apenas estados de alma. A beleza exterior e sensual nenhum papel desempenha nessa criação. Uma sublimada vida introspectiva, aquilo a que Segall chamou de “verdade interior”, revela-se, porém, nela, com uma pujança avassaladora.” (Rosa Schapiro, Moraes, Lasar Segall: Antologias de textos nacionais sobre a obra do artista, Rio de Janeiro, 1982).

Família, 1922

Segall vive e desenvolve a sua actividade artística entre as duas grandes guerras do século XX que, juntas, espalharam pelos campos e cidades da Europa, entre militares e civis, cerca de setenta milhões de mortos! Para além da guerra e dos seus horrores, incluindo o Holocausto, os seus trabalhos tratam o drama das famílias migrantes e dos refugiados que o autor observou de perto, durante as longas e, muitas vezes, tormentosas viagens transatlânticas, a bordo dos navios superlotados e onde a maioria viaja em condições infra-humanas. O cenário não seria, por certo, muito diferente daquele que nos é descrito, em finais do século XIX, por um médico “de bordo”: “A temperatura não é apenas um factor que torna a atmosfera dos dormitórios sem condições de respirar, ocorre também o vapor da água e o ácido do gás carbónico expelido pela respiração, os produtos tóxicos causados pela secreção dos corpos, das roupas das crianças e adultos que por medo ou preguiça urinam e defecam pelos ângulos dos locais onde estão alojados. A impressão de desgosto e repugnância que se sente descendo ao porão onde haviam dormido os emigrantes era tal que, experimentada uma só vez, não dá para esquecer jamais.” (CANTÙ, V. L’igiene a bordo dei piroscafi addetti al trasporto degli emigranti. Rivista di igiene e di sanità pubblica, n. 17, 1895).

Lasar Segall, Interior de Pobres, 1921 – O sofrimento provocado pela guerra e a injustiça social são temas dominantes nos seus trabalhos
Êxodo II, 1949 – A perseguição aos judeus é, também, um tema recorrente na obra de Segall

Desde que enceta a sua primeira viagem entre a Europa e o Brasil (1912), Lasar vai desenhando, em pequenos cadernos, assim como quem tira notas, impressões e experiências vividas a bordo. Retrata diferentes tipos (psicológicos e sociais) humanos, as suas rotinas, a lida diária da marinhagem, a imensidão do oceano rebelde e esmagador frente à frágil massa humana amontoada, carregada de ansiedade e mil incertezas. É daqui que resultariam, em 1920, as gravuras da série intitulada “Emigrantes”, de que abaixo se reproduzem algumas.

Já em plena II Guerra Mundial, surgiria a tela de apreciável dimensão, “Navio de Emigrantes”, pintada no período compreendido entre 1939 e 1941: “A própria vida do pintor cruza-se com a dos emigrantes homenageados nesta tela, grandiosa alegoria da emigração e um testemunho veemente da história do século XX, na qual a questão da emigração tem papel de destaque, envolvendo vários povos.” (Margaret Imbroisi, https://www.historiadasartes.com/author/a9b5c1/).

Navio de Emigrantes“, pintura com 230 cm x 275 cm, realizada entre 1939 e 1941, em plena II Guerra Mundial.

Agora, na Europa, já na segunda década do século XXI, a guerra, com as grandes vagas migratórias, os perseguidos e os refugiados, entrou, de novo, em palco. Entretanto, dados os novos e prodigiosos avanços tecnológicos, parece decorrer um concurso entre os vários canais de televisão, cujo objectivo é o de saber qual o que consegue captar maior número de telespectadores, no sofá, para assistir às imagens de cenas obscenas da guerra, em directo, mostradas até à exaustão, e que o homem da “Velha Europa” etnocêntrica ainda é capaz de perpetrar. E assente está que assim tem de continuar a ser, pois foi manifestada necessidade, urgente, de robusto e geral investimento em armamento militar. Portugal inclusive, mesmo com 16% da população a viver abaixo do limiar da pobreza. Faz mover a economia, gera empregos, dizem. E pronto!

Ucrânia, 2022
Ucrânia, 2022

Perigosamente, a indiferença perante as atrocidades começa a ganhar cada vez mais adeptos. A rotina vai-se instalando e, dentro de pouco tempo, se esta guerra não conhecer um fim, o Sr. Zelensky ficará, provavelmente, não a fazer um balanço diário da guerra urbi et orbi, mas sim a falar para o boneco. Ele e todos os senhores da guerra.

O povo ucraniano, mártir, já pressente o fim do seu país enquanto centro das atenções do mundo. Ainda “ontem” houve guerra na Bósnia-Herzegovina/Balcãs/Europa. Com direito a genocídio! Acaso haverá por aí quem se recorde? Percebeu, igualmente, que ali mais para ocidente, os tais amigos espectadores de sofá vão estar preocupados e ocupados em resolver as vidinhas que o Sr. Putin entendeu complicar, quiçá muito à custa da enorme “janela de oportunidades” que a reconstrução de uma Ucrânia em ruínas abrirá…

O refúgio na arte pode ser, ainda, o ponto a partir do qual tomamos consciência da barbárie que caracteriza o estádio, primário, do processo civilizacional em que ainda permanecemos…

Luís Bastos

Refúgio na arte (1)

Pormenor da obra “Os Emigrantes”, do pintor Domingos Rebelo (Ponta Delgada, 1891 – Lisboa, 1975).

A esmagadora maioria dos que emigram ou se refugiam fá-lo porque não consegue garantir os indispensáveis meios de subsistência ou, então, na sequência de catástrofes naturais; também por perseguições políticas e religiosas ou para fugir à guerra. É assim que os grandes e cíclicos fluxos migratórios abrangem desde as gentes mais simples, que procuram o sustento que a pátria-mãe lhes negou, aos intelectuais e escritores, aos cientistas e artistas, em busca da segurança e da liberdade tão necessárias ao desenvolvimento da actividade criativa. Despojados e desenraizados das origens, lançados ao destino, prosseguem o caminho sinuoso de uma existência agravada, ainda, pelo sentimento de crise identitária.

Conhecem bem o fenómeno os milhares de açorianos que, ao longo de muitos anos, e por diversos motivos, procuraram melhor sorte, rasgando horizontes mais ambiciosos, emigrando, sobretudo, para as Américas.

Porém, histórias há, envolvendo refugiados, que estão recheadas de episódios épicos, de um por à prova os limites da resistência humana a todo o tipo de vicissitudes. Entre estes, contam-se alguns dos mais notáveis pintores, cujo génio impregnou nas respectivas obras, de forma magistral, e para a posteridade, a tremenda experiência do infortúnio.

 “O Refugiado”, 1939, é uma obra de Felix Nussbaum pintada em vésperas da II Guerra Mundial. O vazio na sala, que se assemelha a uma cela, é esmagador, e o globo terrestre exibe uma Europa ameaçada pelo poder da Alemanha nazi. Lá fora, numa nesga de claridade, pairam corvos: não há refúgio para o judeu.
Felix Nussbaum

O judeu alemão Felix Nussbaum (Alemanha,1904 – Auschwitz-Birkenau, 1944) é considerado um pintor do Holocausto. Sentimentos de dor e de solidão, o sofrimento, a esperança e a desesperança estão bem patentes em obras como “O Refugiado”, “O Medo”, “No Campo de Concentração” ou, naquela que é considerada a sua obra-prima, “O triunfo da Morte”, aliás, a última criação do autor. Nesta, antevê o artista, claramente, o fim trágico que o esperaria a ele e a sua mulher, Felka. Nussbaum já não esperava – depois de anos a saltar de país em país, por sótãos e caves, sempre em busca de refúgio seguro – sobreviver ao nazismo.

Quando Hitler chega ao poder na Alemanha (1933), o pintor foge para Bruxelas. Porém, em 1940, com a ocupação da Bélgica, é preso e levado para um campo de concentração situado em Saint-Cyprien, perto da fronteira francesa com Espanha e de onde consegue fugir volvidos dois meses, experiência que é recordada em “No Campo de Concentração”.

Felix Nussbaum, “No Campo de Concentração”, 1940.

Vivendo clandestinamente em Bruxelas, para onde regressara fugido de Saint Cyprien, é traído por um “amigo” que o denuncia à Gestapo. Felix e Felka embarcaram, em julho de 1944, no último comboio de deportação que partiu da Bélgica. Foram mortos nas câmaras de gás, em Auschwitz-Birkenau, logo em Agosto.

“Medo”, de Felix Nussbaum, 1941 (Auto-retrato com sua sobrinha Marianne).
Felix Nussbaum,”Triunfo da Morte”, 1944, a última obra do autor. Esqueletos tocam e dançam no meio de um caos de ruínas e pedaços de coisas simbolizando a destruição da cultura ocidental.

Considerado um dos maiores pintores alemães do século XX, foi influenciado pelas correntes estéticas do expressionismo e do surrealismo das primeiras décadas daquele século.

Na imagem ao lado, pode observar-se o edifício do Museu Felix Nussbaum, construído em 1998, em Osnabrück, cidade natal do pintor, na Alemanha.

Luís Bastos