Até quando aguentaremos?

Há mais de noventa dias que estas pulsões de morte, que volta e meia nos visitam e nos fazem regredir ao estado de natureza, pré-civilizacional, se vêm traduzindo numa enorme brutalidade, em assassinatos, violência e destruição contra tudo e todos: casas, escolas, hospitais e creches, indefesos, velhos, doentes, crianças, gente comum. As atrocidades são transmitidas na TV, todos os dias e, em alguns canais, ao longo das 24 horas. Se a tudo isto juntarmos alguns jornalistas e comentadores de pacotilha (sobretudo os propagandistas a soldo), as grandes audiências estão garantidas e o negócio prospera. Trata-se de produtos altamente consumíveis graças às emoções que as imagens despertam na massa informe e ululante: a exibição da força bruta, o sofrimento e a morte projectados no ecrã e visionados a partir do sofá, de preferência.

Ucrânia, 2022

A Rússia invadiu a Ucrânia, violando o Direito Internacional (como outros países do “Ocidente” também já o fizeram em tempos não muito remotos), e a guerra deflagrou, assim, em território da Europa (do Leste), entre duas repúblicas da ex-União Soviética, império onde Putin foi agente de espionagem com impecável e não menos invejável folha de serviços.

Vladimir Putin

Com mão de ferro, agora, despoticamente dirige o estado russo, espezinhando as liberdades fundamentais, a democracia e os Direitos Humanos. Os opositores são alvo de repressão e de perseguição, são presos, sendo que a alguns fá-los mesmo desaparecer à boa maneira medieva. Vive no luxo, exibe magnanimidade, estriba-se no poder de um punhado de oligarcas servis e sonha com a reconstrução do império. Por si só, a invasão da Ucrânia diz bem das ambições expansionistas da Rússia bem como das suas pretensões de domínio dos portos de águas quentes, julgados imprescindíveis de acordo com o que considera ser a sua estratégia e interesses geopolíticos. Queira-se ou não, goste-se ou não, certo é que os seus objectivos até estão perto de serem alcançados.

Alan, de três anos de idade morre numa praia da Turquia depois do naufrágio de uma embarcação de refugiados sírios

O que ouvimos e vemos acontecer na Ucrânia é, do ponto de vista humano, terrífico, inenarrável. Mas os episódios a que assistimos, em termos de miséria humana, não foram muito diferentes em lugares como a Síria, o Iraque ou o Afeganistão. E os campos de refugiados, bem como o tratamento humilhante a que estes foram submetidos, quando ainda em trânsito, por parte de países europeus, constituem uma vergonha para todos nós, europeus, que repudiamos, agora, esta guerra e acolhemos os refugiados.

  Síria, 2020

Mas aquelas são terras distantes, outros povos, outras culturas, e este enraizado pendor etnocêntrico europeu está bem longe de ter os dias contados. E é disto que se trata.

Do regime político da Ucrânia, antes ou depois de Zelensky (presidente eleito democraticamente), sabemos que a democracia tem sido um processo de difícil construção, deparando-se com vários obstáculos que lhe vedam, inclusivamente, uma integração na UE, não sendo por acaso que Emmanuel Macron remeteu já essa possibilidade para as calendas.

Volodymyr Zelensky 

De facto, a separação de poderes, o Estado de Direito está longe de ser uma realidade naquele país, onde o povo luta pelas liberdades e sua consolidação, incluindo a de imprensa. Num relatório de 2021 sobre Direitos Humanos, a ONU denuncia várias acções contra a liberdade de expressão, envolvendo jornalistas e outros profissionais de órgãos de comunicação social críticos do Governo. Relata restrições à participação em manifestações e ataques a activistas. Por outro lado, os oligarcas ucranianos exercem forte influência sobre a economia, bem como controlo sobre o aparelho político, enquanto a corrupção mina o país, alastrando-se pelos sectores político, económico e judicial, segundo os dados mais recentes da “Transparency International”, uma rede global anti-corrupção presente em mais de 100 países, incluindo Portugal.

Impedida de aderir à NATO, excluída da integração europeia, pelo menos por agora, e com a progressão dos exércitos inimigos no seu território, a Ucrânia caminha, irremediavelmente, para uma posição de impasse. A recusa de cedências mútuas por parte dos estados beligerantes e seus apoiantes (até agora), afastando soluções negociais capazes de viabilizar a paz, comporta riscos de arrastamento da Europa e dos países da UE para tempos particularmente críticos e que não devem ser menosprezados. Aliás, as consequências do conflito já aí estão: o aumento do preço das matérias-primas e de bens essenciais, a inflação e consequente queda dos salários e poder de compra, a anunciada subida das taxas de juro, enfim, a carestia de vida que a todos começa a chegar.

Se a guerra se prolongar, situação em que as partes directa e indirectamente envolvidas parecem apostar, o agravamento das condições de vida na Europa e, sobretudo, nos países mais vulneráveis, como é o caso de Portugal, poderá abrir portas à agudização do conflito social, a ondas de protesto e ao declínio das economias. Passaremos, então, a prestar menos atenção à guerra entre países do leste e a emocionarmo-nos mais com as condições da nossa vida em concreto.

“As Consequências da Guerra”, Rubens (1638)

Por cá, aproveitou-se, ainda, a “janela de oportunidades” para reforçar o orçamento da defesa, ofereceram-se 250 milhões (por fases…) e material de guerra “disponível”. Tal nos permitirá, com sorte (pois a concorrência será desmesurada), o acesso a um lugar na fila de espera para colaborar no gigantesco negócio que constituirá a reconstrução do país martirizado. Talvez nos calhe um bairro, quem sabe?

Entretanto, continuarão os apelos, via TV, do excelente comunicador Zelensky para a doação, pelo “Ocidente”, de mais armamento e mais dinheiro, bem como o sistemático jogo de manipulação das emoções dos espectadores à custa da carnificina de que vai sendo vítima o povo da Ucrânia a cada dia que passa e sem que a paz se vislumbre. Até quando aguentaremos?

Luís Bastos


Lodo no cais?

“Há Lodo no Cais” é um clássico da sétima arte, cujo título original, On the Waterfront, realizado por Elia Kazan, em 1954, projectou ao estrelato o actor Marlon Brando. Este filme, que tem música de Leonard Bernstein, constituiu um enorme sucesso pela sua forte conotação política em pleno período de macarthismo e de “caça às bruxas” nos Estados Unidos da América. Arrecadou um total de oito Óscares, incluindo os de Melhor Realizador, Melhor Actor Principal e Melhor Actriz Secundária.

Aborda a situação dos estivadores dos portos de Nova Iorque cujos sindicatos são “dirigidos” por membros do crime organizado, corruptos mafiosos a soldo dos patrões que os oprimem e manipulam. A extorsão e a delação fazem “lei” e o medo da perseguição e da repressão sobre os sindicalistas faz com que muitos verguem.

Senador republicano J. McCarthy

Viviam-se, então, tempos de plena Guerra Fria, no auge do anticomunismo, e as leis implacáveis do senador Joseph Raymond McCarthy e as acções desencadeadas pela “Comissão das Actividades Antiamericanas” que ele integra visavam descobrir “infiltrados” comunistas no âmbito das instituições do Estado e em outros sectores de actividade, como o intelectual ou o artístico. Todos os suspeitos de pensar “à esquerda”, ou seja, de se manifestarem, de algum modo, contra as políticas do Estado norte-americano seriam considerados subversivos ou comunistas e, como tal, deviam ser silenciados. Mas se, como contrapartida, aceitassem denunciar alguém por actividades “antiamericanas”, talvez os deixassem em paz… O macarthismo e as suas leis “anti-subversivas” serviam que nem uma luva a todos os grandes empresários que, assim, dispunham de “apoio legal” para travar a luta sindical e as reivindicações dos trabalhadores organizados por melhores condições de trabalho e salariais.

O próprio realizador, Elia Kazan, foi um delator. Acusado de ter sido membro activo do Partido Comunista, acabou por denunciar antigos camaradas que assim viram, como tantos outros, as suas vidas em suspenso e o seu futuro ameaçado. Aliás, a traição é, significativamente, um dos temas centrais do filme, sendo por muitos entendida esta centralidade como oportunidade de redenção de Kazan face ao seu comportamento. A controvérsia permanece, contudo, acesa no mundo cinéfilo.

Elia Kazan foi premiado com um Óscar, em 1999, entre os aplausos de uns e a indiferença de outros.

Hoje, o termo “macarthismo” é usado de forma mais ampla e genérica para descrever, por exemplo, acusações graves que são feitas levianamente, isto é, sem fundamento, ou, então, desferir ataques ao carácter das pessoas, à sua vida privada, ou às suas ideias, sobretudo, políticas, visando a sua fragilização. Algum tipo de “macarthismo” está bem presente no seio das democracias dos nossos dias e, por vezes, encontramo-lo, até, onde menos esperamos…

Anna Netrebko

No Diário de Notícias do passado mês de Março, podia ler-se que “poucos dias após o início do ataque russo à Ucrânia, a Ópera de Nova Iorque, também conhecida como Metropolitan Opera, demitiu Anna Netrebko, uma das suas principais sopranos. A cantora, que tinha sido contratada para fazer duas temporadas de concertos, acabou por anunciar uma pausa na carreira depois dos seus espetáculos terem sido cancelados”.

Valeri Guerguiev

Também a Ópera de Munique cancelou os espectáculos previstos com os russos Anna Netrebko e o Maestro Valeri Guerguiev por estes não terem revelado suficiente distanciamento da política do seu país em relação à Ucrânia. Sobre este assunto, declarou a soprano Netrebko: “Obrigar artistas ou qualquer figura pública a expressar as suas opiniões políticas em público e a denunciar a sua Pátria não é correto.” Recentemente, a cantora lá condenou a guerra na Ucrânia e espera, assim, retomar, em breve, os concertos cancelados…

E, se por esta ou por aquela outra razão a “caça às bruxas” vai prosseguindo o seu caminho por esse mundo fora, agora, até no Parlamento Açoriano uma espécie de macarthismo parece ter dado ares da sua graça a propósito e a despropósito do debate, por iniciativa do Governo Regional, no passado dia 12, sobre as finanças regionais. O que ali foi afirmado e/ou insinuado, quer pelo Secretário Regional, quer pelo líder da Oposição e ex-Presidente do Governo, foi de uma gravidade tal que, a bem da democracia e da transparência dos poderes públicos autónomos, devem ser exigidos esclarecimentos políticos em sede própria, e de forma célere, de ambos os intervenientes. Importa saber quem fala a verdade sobre benefícios concedidos a entidades em detrimento de outras, sobre procedimentos judiciais prescritos, sobre os “suspensos e os revistos” e, claro está, do que é que estamos, exactamente, a falar. Ficamos, ainda, sem saber, entre outras coisas, qual o montante da dívida da Região, se o Governo prescindiu de receitas fiscais, se recebeu verbas do PRR e, em caso afirmativo, o que foi já executado dos montantes recebidos. Finalmente, e não totalmente justificada, fica a oportunidade da própria iniciativa do Governo.

A credibilidade da Autonomia e das suas instituições não se compagina com suspeições que, uma vez lançadas no ar, neste fiquem a pairar eternamente. Lodo no cais?

Luís Bastos

Do Can-Can e outras (an)danças

JACQUES OFFENBACH (COLÓNIA 1819 – PARIS 1880)

Associado ao sucesso deste músico e compositor estão as suas famosas operetas que espalham alegria e comicidade q.b., no esplendor da vida artística e da boémia parisienses da segunda metade do século XIX. Nelas, a sátira e a crítica sociais preenchem os libretos. A opereta é uma ópera mais leve, sem aquela carga séria de conteúdos e forma que privilegia o lado dramático da vida. Opõe-se à chamada Grande Ópera da qual, aliás, troça. A opereta abriu caminho ao teatro musical e à música ligeira. Para alguns ela é mesmo uma “anti-ópera”. Embora sem consenso entre os melómanos, pode também designar-se por ópera-bufa.

A primeira opereta de Offenbach, Orfeu no Inferno, guinda logo o compositor ao patamar da fama internacional. A razão principal deste feito deve-se, sobretudo, à inclusão de uma dança francesa que se difunde a partir da década de 30 do século XIX – o Can-Can.

Abertura da bela opereta Orfeu no Inferno. Neste vídeo, aos 07:08 min., deparamo-nos com o conhecido e popular tema musical para dança Can-Can
Jacques Offenbach

Este francês de coração, nascido na Alemanha, para além de ter composto muitas outras operetas célebres como La Belle Hélène, La Vie Parisienne ou La Princesse de Trébizonde, ainda arranja forças, já doente e no ocaso da vida, que lhe permitem compor a sua opus magnum, a ópera séria com que sempre sonhou – Os Contos de Hoffmann, uma homenagem a este escritor alemão que Offenbach muito admirava. Porém, a estreia desta obra só viria a acontecer depois da sua morte, em 1880.

E enquanto a folia reinava na “night” parisiense de finais do século XIX, os franceses rendiam-se, humilhantemente, às mãos de Bismarck, vencedor da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), o que, diz-se, muito entristeceu Jacques Offenbach. Mas aquela sua ópera, Os Contos de Hoffmann, constituiu retumbante sucesso, continuando a suscitar hoje aplauso generalizado pelos palcos deste mundo.

TOULOUSE-LAUTREC (1864-1901) 

Henri de Toulouse-Lautrec, Moulin Rouge: La Goulue, 1891
Toulouse Lautrec (1864-1901)

Indissociável da opereta e de toda a ambiência destes tempos de boémia vivida nos célebres cabarés, bordéis e outros espaços catalizadores de animação profusa que preenchiam as então novíssimas “boulevards” de Paris está a obra do pintor que retratou aquele período com grande mestria, e não menos humor, não fosse ele próprio um boémio assíduo frequentador daqueles espaços dos quais viria, aliás, a ser vítima mortal – Henri de Toulouse-Lautrec. Pós-impressionista, pintou mais de 1000 quadros e inúmeros desenhos, introduziu um design inovador em cartazes que revolucionariam o estilo publicitário e que ajudaria a abrir as portas à Art Nouveau.

Henri de Toulouse-Lautrec, La Troupe de Mademoiselle Églantine, 1896 (Cartaz publicitário)
Henri de Toulouse-Lautrec, No Moulin Rouge, 1892-1895

A COMUNA DE PARIS

Neste eufórico ambiente parisiense de finais do século XIX, ao mesmo tempo que fervilhava o espírito científico e a literatura estava representada por autores tão distintos entre si, como Zola, Mallarmé ou Júlio Verne, e a arte por Lautrec ou Gauguin ou, ainda, a filosofia e a política inspiradas por Marx e Engels, em rota de colisão com Proudhon, ainda se assistiu à insurreição popular que conseguiu formar o primeiro e talvez único governo proletário da história – a Comuna de Paris. Durou apenas dois meses (entre março e maio de 1871), porém o tempo suficiente para que boa parte das medidas então proclamadas por socialistas, anarquistas, jacobinos e outros passassem a incluir direitos e valores fundamentais que norteariam os trabalhadores na sua luta contra a exploração e a opressão, até aos nossos dias. Alguns continuam, aliás, a constituir objecto de reivindicação no seio de certas democracias representativas, como sejam os casos da abolição da pena de morte, laicização do Estado e da Escola (separação Igreja/Estado), ensino obrigatório e gratuito, igualdade entre sexos ou a introdução do salário mínimo.

A Comuna foi esmagada pelo exército francês após o cerco a Paris, com a anuência, claro está, do “inimigo” prussiano. Do banho de sangue a que a cidade das luzes então assistiu durante uma semana (semaine sanglante, 21/05/1871 – 28/05/1871), ficou a força das ideias que ajudariam ao progresso civilizacional. Mas estes são contos de uma outra história…

Luís Bastos

Camille Saint-Saens (Paris, 1835 – Argel, 1921)

Na Apresentação da 2.ª edição da Fotobiografia de Mota Amaral, na Sala do Senado da Assembleia da República

No passado dia 27 de Abril, ao fim da tarde, em Lisboa, a convite da Assembleia da República e da Editora Letras Lavadas, tive a honra e o prazer de fazer uma intervenção na sessão de lançamento da 2.ª edição da Fotobiografia de João Bosco Mota Amaral, da qual sou o autor.

Presidiu à sessão Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, ladeado pelo foto-biografado, Mota Amaral, pelo editor, Ernesto Resendes, bem como pelos convidados para a apresentação da obra: Leonor Beleza, Conselheira de Estado, o Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e o antigo Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues. Esta sessão, inicialmente prevista para a Biblioteca Parlamentar Passos Manuel, acabaria por ser transferida, dado o elevado número de presenças confirmadas, para o espaço mais amplo que é a Sala do Senado.

Alguns órgãos de comunicação social até chegaram a confundir o evento com uma homenagem que a Assembleia da República estaria a prestar ao distinto político açoriano. E julgo que, até, o próprio Primeiro-Ministro terá sido induzido em erro! E razões para isso, de facto, não faltavam, nem faltam! Mas aguardemos…

Neste post, a minha intenção é dar a conhecer aos seguidores do Azorean Torpor, bem como a todos os seus leitores em geral, o texto que elaborei para ler naquela ocasião. Eis, pois, o conteúdo do mesmo:

É com subida honra e enorme gosto que aqui me encontro hoje, a convite da Assembleia da República e da Editora Letras Lavadas –  o que muito agradeço, na pessoa de S. Ex.ª o Sr. Presidente, Doutor Augusto Santos Silva, e do editor Sr. Ernesto Resendes -,  neste belo espaço de um edifício carregado de história, que alberga o coração (e o cérebro…) da democracia portuguesa, e perante tão ilustres personalidades que formam este painel, cidadãos que deram e continuam a dar, com o seu trabalho de excelência, em tão importantes e variados sectores da sociedade, o melhor de si, pelo progresso do nosso país.

Entre os presentes consigo descortinar, também, amigos, alguns deles distintos conterrâneos que continuam a prestar um altíssimo contributo para a causa açoriana e de Portugal. O meu bem-haja a todos!

A Fotobiografia que ora nos reúne nasce na sequência de um projeto editorial das Letras Lavadas a que aderi com o maior prazer, após convite que me endereçou, por alvitre do próprio Dr. João Bosco Mota Amaral, o qual, se muito me honrou, não me alivia, nem me aliviará de pesada responsabilidade.

Foi minha intenção neste trabalho destacar tempos politicamente decisivos da história da construção e progressiva consolidação da Autonomia dos Açores realçando o papel determinante neles desempenhado pelo seu fundador, o político português de exceção que é Mota Amaral, bem como a sua atividade como Presidente da Assembleia da República.

João Bosco Mota Amaral estreia-se na cena política nacional como Deputado na “Ala Liberal” da Assembleia Nacional, em 1969 (juntamente com outros colegas, de entre os quais destaco Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão), ali ganhando saber e experiência como político.

Esta oposição institucional consentida pela designada “Primavera Marcelista”, e cuja ação constituiu uma “pedrada no charco”, chegando, mesmo, a alimentar alguma expectativa no que toca a abertura e liberalização do regime, cedo toma consciência de que tudo não passava, afinal, de pura quimera.

No entanto, as repercussões da intensa atividade política desenvolvida por Mota Amaral como Deputado pelo Distrito de Ponta Delgada, denunciando com coragem e frontalidade os gravíssimos problemas sociais e económicos que tornavam insustentável a vida de muitos açorianos, obrigando-os a emigrar às revoadas, obtiveram enorme eco nos Açores. E apesar de todos os constrangimentos, uma voz política incómoda soava na Assembleia Nacional e nos jornais, colocava os Açores no mapa político de Portugal e ajudava na desestabilização do regime.

As intervenções políticas de João Bosco no ambiente ilhéu do final da década de 60 e princípios dos anos 70 do século passado despertaram consciências políticas adormecidas pela ostracização, indignadas com a injustiça social e revoltadas com uma guerra colonial que ceifava vidas jovens e não tinha solução à vista.

Quando, por fim, o heroico Movimento das Forças Armadas avança sobre Lisboa para derrubar a ditadura, instaurar a democracia em Portugal e restituir as liberdades ao povo, na memorável madrugada do dia 25 de Abril de 1974, Mota Amaral é já um político preparado, que goza de popularidade e estima nos Açores, bem como de projeção nacional. Imediatamente, e de forma entusiástica, se identifica com as linhas programáticas do MFA, não fossem, muitas delas, coincidentes com as ideias plasmadas no malogrado “Projeto de Revisão Constitucional da Ala Liberal”, que elaborara anos antes, em parceria com Francisco Sá Carneiro.

Jaime Gama com o Primeiro-Ministro António Costa

De volta aos Açores, não tarda a integrar o recém-formado Partido Popular Democrático e, progressivamente, com outros jovens militantes, vai gizando um projeto político para os Açores, de cariz inovador, transformador, que se adeque às suas especificidades socioeconómicas e culturais, impostas pela sua História e pela sua Geografia. Ganhava corpo um projeto de dimensão regional de autonomia política e administrativa para os Açores.

E será já no auge da agitação revolucionária, logo pós a realização das primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte que irão ter lugar os acesos debates, no âmbito da Comissão dos Assuntos das Regiões Autónomas, presidida pelo Deputado Jaime Gama, muito marcados ideologicamente e com carga emocional decorrente dos sabores e sentidos vários que a marcha da revolução vai então tomando. O desafio lançado àquele grupo de Deputados era enorme: tratava-se de teorizar e legislar sobre um futuro político para os Açores e de estudar que modelo havia de enformar um estatuto político-administrativo no quadro do novo Portugal livre e democrático que, simultaneamente, satisfizesse os anseios e as expectativas das suas populações.

Mota Amaral detinha, já por esta altura, fortíssima legitimidade política, que as eleições lhe haviam conferido, através de confortável maioria obtida pelo Partido Popular Democrático, que então liderava, nas eleições para a “Constituinte”. Este facto revelar-se-ia ainda fundamental, para o robustecimento da argumentação a favor de um projeto autonómico cujos contornos surgiam, agora, claramente desenhados na sua mente. Também a indiscutível popularidade de que goza nos Açores, ajudam-no a mobilizar a rua, sempre que a situação política nacional se mostrava desfavorável, ou até hostil, à realização efetiva do sonho açoriano de autogoverno.

O Primeiro-Ministro António Costa com Mota Amaral, pouco antes do início da cerimónia de lançamento da Fotobiografia

Entretanto, a Constituição fez-se, Portugal dava um importantíssimo passo no processo de democratização e os Açores conquistavam a sua Autonomia Política e Administrativa, parte integrante da Constituição da República, anos depois concretizada na forma de Estatuto.

Ora, para um país cuja cultura política se enraizava numa tradição fortemente centralizadora, este novo enquadramento constitucional vai conhecer um processo de assimilação nacional lento, gerador de muita incompreensão, mal-entendidos e até da desconfiança de alguns dos governos centrais.

Seja nos períodos de tensão, que os houve, seja naqueles de convergência quanto às políticas, certo é que os governos sob a liderança de Mota Amaral se saldaram num extraordinário avanço em termos de desenvolvimento e modernização dos Açores, em todos os sectores da vida económica, social e cultural, que não conhece precedentes em toda a sua história.

Ainda que o progresso seja, indubitavelmente, uma tarefa coletiva, as arrojadas metas de desenvolvimento então traçadas, a coragem e a astúcia demonstradas na tarefa hercúlea de as pôr em prática, já que se partia de uma situação de total inexistência de recursos, quer humanos, quer financeiros, conferem a Mota Amaral o estatuto de maior político açoriano de sempre, e um de entre os maiores na história recente de Portugal.

Também o incremento de relações privilegiadas com os Estados Unidos da América e o Canadá, motivado pela forte presença de comunidades de emigrantes açorianos nestes dois países e pela utilização de facilidades na Região por parte dos Estados Unidos da América irá revestir-se de especial significado na atividade política e diplomática do primeiro Presidente da Região Autónoma dos Açores.

Nesta Fotobiografia releva-se, igualmente, o seu papel preponderante como participante nas várias conferências das regiões insulares da Europa, principalmente das periféricas marítimas, de que foi um dos principais impulsionadores no âmbito do Conselho da Europa. Daqui reclamou a atenção para a necessidade de assegurar o futuro desenvolvimento económico e social das ilhas, ao tempo ainda muito marginalizadas pelos poderes centrais europeus. Neste sentido, foi um dos principais obreiros de uma autêntica comunidade de interesses ilhéus que acabou por garantir, com a integração europeia, substanciais apoios em áreas económicas e sociais consideradas estratégicas para o seu progresso.

A criação das Regiões Ultraperiféricas, e a consequente afirmação destas no contexto da União Europeia, revelar-se-ia, ainda, decisiva para um efetivo desenvolvimento dos Açores, fruto, aliás, das persistentes movimentações políticas e diplomáticas de Mota Amaral.

Neste livro aborda-se, ainda, a estreita e frutuosa cooperação entre as regiões autónomas da Madeira e dos Açores num vasto leque de matérias, que veio a revelar-se fundamental para a construção de uma das mais importantes realizações do novo Portugal democrático saído da Revolução do 25 de Abril – as autonomias regionais.

Mota Amaral, que havia deixado a Presidência do Governo da Região Autónoma dos Açores em 1995, e já na qualidade de Deputado eleito pelos Açores nas eleições legislativas nacionais de outubro daquele mesmo ano, desenvolve, agora, notória atividade pública de âmbito nacional, intervindo regularmente quer na imprensa diária, quer noutros espaços de debate público. Entre outros assuntos, reflete sobre o sistema de funcionamento do Parlamento português, avançando com ideias e propostas reformadoras que visavam a recuperação do seu prestígio e estatuto de centralidade, espaço que, em sua opinião, havia perdido no panorama das instituições da política portuguesa. Mostrava, ainda, preocupação com a imagem do Parlamento junto da opinião pública.

Por isso, já na qualidade de Presidente da Assembleia da República, lugar para o qual seria eleito na sequência das eleições de 2002, abre as portas do Palácio de São Bento à sociedade civil, reforma métodos no seu funcionamento interno, aprofunda e dinamiza o âmbito dos trabalhos das comissões parlamentares, e retira o máximo proveito das potencialidades que a era digital estava já a oferecer.

A preocupação pela transparência da atividade parlamentar, pela imagem dos Deputados e pela afirmação da centralidade do poder legislativo conduz à ideia de que o Canal Parlamento deverá tornar-se num instrumento fundamental para a aproximação entre os eleitos e os eleitores.

Por outro lado, foi notória a sua preocupação com o novo papel que num mundo globalizado os parlamentos deveriam passar a ter no contexto da política externa do Estado. Considera que esta, de acordo com os novos tempos, deixara de ser, e cito, “um domínio reservado do Poder Executivo”. Daqui que o reforço da diplomacia parlamentar seja um dos legados de Mota Amaral enquanto Presidente da Assembleia da República. Pugnou por um Parlamento mais ativo e útil em matéria de política externa, facilitador de pontes de cooperação com as instituições homólogas.

Afinal, e sem perder o sentido da prudência e do realismo que a atividade diplomática não deve menosprezar, Mota Amaral é um simpatizante do cosmopolitismo como condição de “paz perpétua”, na esteira do desafiador ideal de Immanuel Kant…

Termino, assim, com votos de boas leituras sobre estes períodos da história recente de Portugal que também se construiu nos Açores.

Muito Obrigado!

Luís Bastos