Ilusão e realidade em tempos de guerra

Kiev, Março de 2022 – Foto: Aris Messinis / AFP

A importância atribuída à comunicação, enquanto forma de persuasão, é muito antiga. Aristóteles, na sua Retórica, discorria já sobre as técnicas para uma boa argumentação visando o discurso persuasivo, sobretudo, quando, em democracia, os destinos da polis eram discutidos e decididos pelo debate entre cidadãos no espaço público. O sucesso de magistrados, homens de negócios e, sobretudo, dos políticos, jogava-se, na Antiguidade Clássica, na Assembleia da ágora, em Atenas ou, mais tarde, no senado romano. Deste modo se estabeleciam as primeiras formas de relação entre o Estado e os cidadãos. Pelos tempos fora, como se sabe, as alterações foram muitas, e aquelas relações conheceram a natureza mais diversa, de acordo com as transformações sociais e as formas de governo que, entretanto, se foram sucedendo.

Ruínas da ágora, Atenas

Uma boa argumentação, quando conduzida pela razão, alicerçada em conhecimento e fundamentada com factos e ideias consistentes, com imprescindível espaço para os processos emocionais, não pode confundir-se com propaganda, ainda que a intenção de persuadir esteja nesta igualmente presente.

A propaganda, sendo, também, um fenómeno muito antigo, surgiu, tal como hoje entendemos o termo, e segundo autores especializados em matéria de comunicação, no seio da Igreja Católica, em 1622, com a Congregação para a Propagação da Fé (Congregatio de Propaganda Fide) fundada pelo papa Gregório XV, num contexto histórico de contra-reforma católica. A sua importância foi aumentando, gradualmente, ao longo dos séculos, e a sua eficácia obteve comprovado e estrondoso êxito com o aparecimento da rádio, nos primórdios do século passado. De facto, como meio de comunicação de massas, a rádio logo foi colocada ao serviço da propaganda (e contra-propaganda) durante os grandes e trágicos acontecimentos mundiais da primeira metade do século XX, como a revolução bolchevique, a ascensão do nazismo, ou dos regimes ditatoriais em alguns países da Europa, como Portugal e Espanha. Veio, ainda, a desempenhar um importante papel na disputa ideológica leste-oeste durante o período da “Guerra Fria”.

Mas os instrumentos de retórica, quando colocados ao serviço da propaganda, já não se destinam a privilegiar o discurso argumentativo lógico, nem o debate de ideias, ou o esclarecimento de conceitos com vista à aquisição de conhecimento. Para persuadir, a propaganda aposta, sim, na sobrevalorização das emoções, no recurso a factos e argumentos básicos ardilosamente elaborados, facilmente percetíveis e onde se misturam rumores e boatos anulando-se fronteiras entre verdade e falsidade. O objectivo é o de construir e difundir uma mensagem capaz de campear o fértil terreno da manipulação das massas, conquistando-as e mobilizando-as para causas previamente definidas.

Hoje, as relações de comunicação entre os estados, os media e os cidadãos, assumem uma enorme complexidade social. Com o fenómeno de progressivo afastamento do estado em relação aos cidadãos, fruto de um processo de desconfiança mútua que vem minando os alicerces da democracia, os media, sobretudo a televisão, mas também as redes sociais, substituíram os tradicionais espaços públicos de debate, onde a participação dos cidadãos (nos sindicatos, partidos políticos, etc.), e em jeito de democracia directa, complementava, de algum modo, as muitas lacunas da democracia representativa. E, no que aos políticos diz respeito, bastará referir o facto, comummente aceite, de que sem televisão e redes sociais dificilmente, hoje, ganhariam visibilidade e as suas mensagens chegariam a vastas camadas da população. O mesmo se diga em relação a jornalistas, comentadores e analistas, civis ou militares.

Ora, há um ano, a Rússia invadiu a Ucrânia, país soberano. Fê-lo à revelia da ONU e violando todas as leis do direito internacional. Como tal, merece forte condenação e a Ucrânia deve ser ajudada pela comunidade internacional a livrar-se do jugo do invasor e da sua lógica imperialista.

Dito isto, num país como Portugal, onde praticamente a única fonte de conhecimento para a esmagadora maioria das pessoas, para além do adquirido na experiência de vida do quotidiano, é o que a televisão transmite (ou quer transmitir), são inaceitáveis estas bolhas de propaganda em que nos enclausuraram, impondo-nos, face à guerra, a conhecida fórmula de manietação de consciências, bem traduzida na velha afirmação “quem não é por nós é contra nós!”.

Embora seja óbvio que tal aconteça de ambos os lados da contenda, tudo o que, entretanto, por cá se vai sabendo sobre a guerra na Ucrânia vem envolto num manto de propaganda, numa clara tentativa de manipulação da informação, tendendo a esconder realidades menos convenientes, as quais, no pós-guerra, poderão tornar-se (porque no fim nada ficará como dantes) num pesadelo geopolítico para a Europa. As interpretações sobre os acontecimentos são, assim, necessariamente enviesadas.

António Costa, em entrevista concedida há dias, alinhando pelo diapasão dos seus congéneres europeus, e outros, não tem dúvidas: ou a Ucrânia ganha a guerra ou não haverá paz, mesmo que a Rússia a ganhe, subentende-se. Infelizmente, as coisas não serão tão lineares assim, e, por vezes, a realidade vai contra aquilo que seria o nosso desejo. Nesta perspectiva maniqueísta, resta saber o que se entende por “vitória” da Ucrânia e por “derrota” da Rússia ou vice-versa. Não nos parece, pois, que esta posição de princípio constitua uma via séria para chegar até à mesa de negociações para a paz. E haverá, mesmo, quem saiba?

O défice (intencional) de informação não nos ajuda a compreender as circunstâncias (determinantes) em que esta guerra decorre, bem pelo contrário. Importaria, por exemplo, esclarecer qual a actual relação de forças militares no terreno, visto que será sempre a partir desta realidade que se poderá avançar com negociações para a paz. Por outro lado, até quando estarão os países da NATO interessados (e por quê) na ajuda à Ucrânia em armamento, mesmo que isso signifique um aumento exponencial do número de mortos e a continuação das atrocidades? Estará mesmo o “ocidente” convicto de que a Ucrânia é um país democrático, que deve ser membro da NATO e integrar a UE? Putin é um autocrata, o regime russo é sustentado por oligarcas conluiados com a Igreja Ortodoxa, e a corrupção impera, sabemos. Mas as histórias que circulam sobre a existência de grupos nazis no seio do regime ucraniano, bem como de corruptos, é propaganda russa? A “moral” dos militares ucranianos continua alta, enquanto a dos russos permanece baixa? Está ou não a ser concebida uma nova ordem internacional onde a guerra e o sacrifício do povo ucraniano servem bem tal desiderato? E que nova ordem é essa?

Kiev,2023. Foto ANDRIY ANDRIYENKO/ AP

Uns são pró-russos outros pró-ucranianos. Mas saberão, ao certo, uns e outros, o que isso realmente significa?

A guerra vai ter um fim. Quem perderá a face?

Luís Bastos

Algumas partes visíveis e outras menos visíveis do problema do ensino

As fragilidades do sistema de ensino em Portugal centram-se em distorções múltiplas acumuladas ao longo de anos pelo desinteresse dos sucessivos governos, seja por incompetência destes, seja por temerem que as reformas profundas de que o sector tanto carece pudessem constituir um perigoso factor de instabilidade, acabando por os derrubar. Note-se que um não menosprezável número de eleitores tem, directa ou indirectamente, ligações à escola. Porém, comprometendo o futuro do país, os governos preferiram a inevitável decadência por inoperância à iniciativa reformista.

A escola pode, em muitos casos, oferecer boas condições de trabalho a professores e a alunos para o desenvolvimento do processo ensino/aprendizagem, como instalações, equipamentos, apoios sociais, ratio professor/aluno, funcionários em número suficiente, etc. No entanto, ela será sempre um recipiente do estado de desenvolvimento global em que a sociedade se encontra. A escola não é uma ilha. Assim, enquanto perdurar a forte clivagem entre classes sociais, em termos de conforto material e bem-estar geral, e a pobreza grassar (em Portugal, em 2021, 1,7 milhões de portugueses tinham, segundo as últimas estatísticas do INE, 551 euros por mês, e cerca de 2,6 milhões viviam com menos de 660 euros), não haverá escola que resista aos elevados números de insucesso e à fuga de alunos em idade escolar.

O caso açoriano é, infelizmente, exemplo (agravado) disto mesmo. É verdade que sempre há falhas, necessidades várias, muita coisa a melhorar. Mas quando as condições para o exercício da docência, comparadas com as dos colegas do território continental da República (com a excepção da Escola Secundária Antero de Quental em Ponta Delgada, alvo de discriminações várias pelos sucessivos governos socialistas…), até são globalmente satisfatórias, e quando os problemas laborais dos professores foram, nos Açores, resolvidos a contento (e bem), não será, apenas, pela disponibilização destes recursos, e pela melhoria dos salários, por mais importantes que sejam estes factores (e são), que a Região sairá da cauda da Europa e de Portugal, no que ao insucesso do ensino diz respeito.

A pouca escolarização de pais e encarregados de educação, a iliteracia, os parcos recursos financeiros da maioria das famílias e, por conseguinte, a ausência de motivação para incentivar e acompanhar os seus educandos ao longo do percurso escolar comprometem, seriamente, uma progressão isenta de fortes obstáculos. E se a tudo isto associarmos outros flagelos sociais, como sejam as elevadíssimas taxas de consumo de álcool (muitas vezes precocemente) e de estupefacientes, facilmente nos damos conta da nossa incompetência, já não para, utopicamente, colocar um ponto final à dramática situação social inevitavelmente projectada na escola, mas, pelo menos, para conjugar esforços tendentes à sua minimização. Ora, facilmente assim se entende a razão por que, entre nós, um ensino de qualidade e o acesso a altas qualificações académicas continuam a constituir um privilégio das elites sociais.

A situação social nos Açores com reflexo na escola não é conjuntural e exige um estudo sério, científico, multidisciplinar, preferencialmente fundado num acordo entre partidos políticos, num pacto social. Só através de um consenso tão amplo quanto possível se poderá abrir caminho a um combate feito segundo um plano e estratégias bem definidas, posteriormente vertidas em ajustadas e adequadas medidas de política. Porque agora já não se trata de um problema de incapacidade do partido A, do partido B, C ou D. Urge retirar as devidas ilações políticas e perceber que o que aqui está em causa é a Autonomia como solução portuguesa para os Açores.

Escola Secundária Antero de Quental, Museu da Física (valioso património cultural em risco)

A outra parte do problema, já não tão visível ao grande público, porque pouco mediatizada, tem a ver com a actualização dos conhecimentos científicos e pedagógicos de muitos professores (sobretudo dos mais jovens) na sua área de especialidade. A verdade é que a formação contínua, que a deveria assegurar, tem estado longe do exigível, tanto em quantidade como em qualidade. Em parte, a tão badalada crise de autoridade do professor pode bem resultar, entre outras razões, da insegurança sentida na transmissão dos saberes, por dificuldades de domínio dos conteúdos científicos específicos da sua disciplina. É certo que os nefastos anos de congelamento da carreira docente, e os de pandemia, contribuíram, naturalmente, para a desmotivação e o desinteresse generalizado pelas tarefas pedagógicas e, em muitos casos, mesmo, à frustração. Por outro lado, a falta de professores que já se faz sentir e que, gradualmente, se acentuará, irá adensar os problemas no ensino. Há, pois, que arregaçar mangas, reverter a situação e tentar, pelo menos, barrar o caminho para o abismo.

Escola Secundária Antero de Quental: um aspecto da Sala Domingos Rebelo (Exposição permanente de 14 quadros do pintor – valioso património em risco)

A Universidade dos Açores tem, obviamente, responsabilidades directas nesta matéria. Dado o cenário em que vivemos, a cooperação estreita com as escolas dos Açores, através da celebração de protocolos com a Secretaria Regional da Educação e Assuntos Culturais (retirando vantagens acrescidas por via da tripolaridade), como, aliás, já em tempos aqui escrevi, torna-se fundamental, não só para a formação contínua dos professores, como, também, para voltar a abrir portas à formação inicial de novos docentes. As compensações financeiras devidas à Universidade, por sua vez, certamente que a ajudariam a sair do estado de penúria permanente a que o garrote centralista a tem devotado.

É tempo, finalmente, de pôr termo às indefinições que pairam, entre nós, sobre a qualificação profissional. As alterações agora previstas para os alunos que completam o 12.º ano de escolaridade obrigatória convidam a uma revisão do papel (confuso a vários níveis…) até agora desempenhado pelas escolas profissionais. Assim, se aquelas alterações forem aprovadas (se é que já não o foram pelo governo central), importará, então, reflectir sobre o que fazer com os alunos que, não pretendendo prosseguir estudos universitários e, como tal, dispensados de exames nacionais (segundo o previsto), sairão das nossas escolas de ensino regular sem qualquer qualificação para o mundo do trabalho (embora já tal aconteça em larga escala). Independentemente da qualificação de profissionais no activo, não terá, enfim, chegado a hora de fechar “capelinhas”, reconverter mordomias que gravitam em torno daquelas e criar (de raiz) um ensino profissional alternativo, credível, aproveitando recursos já existentes, com tutela partilhada e certificação reconhecida pelas leis deste país e desta Região Autónoma?

Luís Bastos