Algumas partes visíveis e outras menos visíveis do problema do ensino

As fragilidades do sistema de ensino em Portugal centram-se em distorções múltiplas acumuladas ao longo de anos pelo desinteresse dos sucessivos governos, seja por incompetência destes, seja por temerem que as reformas profundas de que o sector tanto carece pudessem constituir um perigoso factor de instabilidade, acabando por os derrubar. Note-se que um não menosprezável número de eleitores tem, directa ou indirectamente, ligações à escola. Porém, comprometendo o futuro do país, os governos preferiram a inevitável decadência por inoperância à iniciativa reformista.

A escola pode, em muitos casos, oferecer boas condições de trabalho a professores e a alunos para o desenvolvimento do processo ensino/aprendizagem, como instalações, equipamentos, apoios sociais, ratio professor/aluno, funcionários em número suficiente, etc. No entanto, ela será sempre um recipiente do estado de desenvolvimento global em que a sociedade se encontra. A escola não é uma ilha. Assim, enquanto perdurar a forte clivagem entre classes sociais, em termos de conforto material e bem-estar geral, e a pobreza grassar (em Portugal, em 2021, 1,7 milhões de portugueses tinham, segundo as últimas estatísticas do INE, 551 euros por mês, e cerca de 2,6 milhões viviam com menos de 660 euros), não haverá escola que resista aos elevados números de insucesso e à fuga de alunos em idade escolar.

O caso açoriano é, infelizmente, exemplo (agravado) disto mesmo. É verdade que sempre há falhas, necessidades várias, muita coisa a melhorar. Mas quando as condições para o exercício da docência, comparadas com as dos colegas do território continental da República (com a excepção da Escola Secundária Antero de Quental em Ponta Delgada, alvo de discriminações várias pelos sucessivos governos socialistas…), até são globalmente satisfatórias, e quando os problemas laborais dos professores foram, nos Açores, resolvidos a contento (e bem), não será, apenas, pela disponibilização destes recursos, e pela melhoria dos salários, por mais importantes que sejam estes factores (e são), que a Região sairá da cauda da Europa e de Portugal, no que ao insucesso do ensino diz respeito.

A pouca escolarização de pais e encarregados de educação, a iliteracia, os parcos recursos financeiros da maioria das famílias e, por conseguinte, a ausência de motivação para incentivar e acompanhar os seus educandos ao longo do percurso escolar comprometem, seriamente, uma progressão isenta de fortes obstáculos. E se a tudo isto associarmos outros flagelos sociais, como sejam as elevadíssimas taxas de consumo de álcool (muitas vezes precocemente) e de estupefacientes, facilmente nos damos conta da nossa incompetência, já não para, utopicamente, colocar um ponto final à dramática situação social inevitavelmente projectada na escola, mas, pelo menos, para conjugar esforços tendentes à sua minimização. Ora, facilmente assim se entende a razão por que, entre nós, um ensino de qualidade e o acesso a altas qualificações académicas continuam a constituir um privilégio das elites sociais.

A situação social nos Açores com reflexo na escola não é conjuntural e exige um estudo sério, científico, multidisciplinar, preferencialmente fundado num acordo entre partidos políticos, num pacto social. Só através de um consenso tão amplo quanto possível se poderá abrir caminho a um combate feito segundo um plano e estratégias bem definidas, posteriormente vertidas em ajustadas e adequadas medidas de política. Porque agora já não se trata de um problema de incapacidade do partido A, do partido B, C ou D. Urge retirar as devidas ilações políticas e perceber que o que aqui está em causa é a Autonomia como solução portuguesa para os Açores.

Escola Secundária Antero de Quental, Museu da Física (valioso património cultural em risco)

A outra parte do problema, já não tão visível ao grande público, porque pouco mediatizada, tem a ver com a actualização dos conhecimentos científicos e pedagógicos de muitos professores (sobretudo dos mais jovens) na sua área de especialidade. A verdade é que a formação contínua, que a deveria assegurar, tem estado longe do exigível, tanto em quantidade como em qualidade. Em parte, a tão badalada crise de autoridade do professor pode bem resultar, entre outras razões, da insegurança sentida na transmissão dos saberes, por dificuldades de domínio dos conteúdos científicos específicos da sua disciplina. É certo que os nefastos anos de congelamento da carreira docente, e os de pandemia, contribuíram, naturalmente, para a desmotivação e o desinteresse generalizado pelas tarefas pedagógicas e, em muitos casos, mesmo, à frustração. Por outro lado, a falta de professores que já se faz sentir e que, gradualmente, se acentuará, irá adensar os problemas no ensino. Há, pois, que arregaçar mangas, reverter a situação e tentar, pelo menos, barrar o caminho para o abismo.

Escola Secundária Antero de Quental: um aspecto da Sala Domingos Rebelo (Exposição permanente de 14 quadros do pintor – valioso património em risco)

A Universidade dos Açores tem, obviamente, responsabilidades directas nesta matéria. Dado o cenário em que vivemos, a cooperação estreita com as escolas dos Açores, através da celebração de protocolos com a Secretaria Regional da Educação e Assuntos Culturais (retirando vantagens acrescidas por via da tripolaridade), como, aliás, já em tempos aqui escrevi, torna-se fundamental, não só para a formação contínua dos professores, como, também, para voltar a abrir portas à formação inicial de novos docentes. As compensações financeiras devidas à Universidade, por sua vez, certamente que a ajudariam a sair do estado de penúria permanente a que o garrote centralista a tem devotado.

É tempo, finalmente, de pôr termo às indefinições que pairam, entre nós, sobre a qualificação profissional. As alterações agora previstas para os alunos que completam o 12.º ano de escolaridade obrigatória convidam a uma revisão do papel (confuso a vários níveis…) até agora desempenhado pelas escolas profissionais. Assim, se aquelas alterações forem aprovadas (se é que já não o foram pelo governo central), importará, então, reflectir sobre o que fazer com os alunos que, não pretendendo prosseguir estudos universitários e, como tal, dispensados de exames nacionais (segundo o previsto), sairão das nossas escolas de ensino regular sem qualquer qualificação para o mundo do trabalho (embora já tal aconteça em larga escala). Independentemente da qualificação de profissionais no activo, não terá, enfim, chegado a hora de fechar “capelinhas”, reconverter mordomias que gravitam em torno daquelas e criar (de raiz) um ensino profissional alternativo, credível, aproveitando recursos já existentes, com tutela partilhada e certificação reconhecida pelas leis deste país e desta Região Autónoma?

Luís Bastos