Durante o período de uma pré-campanha eleitoral, há muito que o país já não assistia a uma onda de protestos com tal dimensão. Desde os professores (de todos os níveis de ensino) aos polícias, passando pelos médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde, até aos agricultores e aos bombeiros, todos se envolveram numa inusitada escalada reivindicativa. A defesa de direitos, como o da habitação, ou o combate ao racismo e à xenofobia, foram igualmente convocados para as ruas. A profunda insatisfação com o governo de esquerda suportado por uma maioria absoluta parece ter aumentado o tom quando este caiu e a pré-campanha se iniciou.
Visando as políticas (não) implementadas, as contestações, uma iniciativa de forças políticas igualmente de esquerda (na sua maioria), para além de um bom serviço prestado aos partidos do espectro político da direita, colocaram em “maus lençóis” o secretário-geral do Partido Socialista, candidato a líder de todas as esquerdas e a primeiro-ministro de Portugal. De facto, nos XXI, XXII e XXIII governos de António Costa, entre 2019 e 2022, tendo a seu cargo a pasta das Infraestruturas e da Habitação, onde aí, sim, podia ter sido cognominado de “o fazedor”, não só acabou por se envolver num conjunto de enredos e trapalhadas que viriam a paralisar o sector, como foi demitido por não acatamento do dever institucional de obediência hierárquica ao Primeiro-Ministro. Por isso, com alguma estranheza o vimos e ouvimos nas televisões portuguesas a proferir palavras de condenação à PSP, só porque esta polícia, em marcha de protesto, acabou desembocando em espaço público não autorizado. Situações diferentes, certamente, mas o princípio da desobediência hierárquica está implícito em ambas as situações.
Porém, casos bem mais graves têm sucedido amiúde no funcionamento das instituições do Estado e, mesmo, nos órgãos de soberania que, como bem sabemos, não escapam ao bem patente processo degenerativo em curso. Como se tudo isto não fosse suficiente, volvido meio século sobre Abril, as Forças Armadas, cada vez mais depauperadas, insatisfeitas e desprestigiadas, ameaçam voltar a sair à rua. Na verdade, já todos perceberam que é a rua que tem ditado a agenda política dos partidos em campanha, os temas mainstream. E também já percebemos que as ruas vão continuar a encher-se muito para além do dia 10 do próximo mês de Março, seja qual for o resultado eleitoral…
Os partidos, vazios de ideias inovadoras, destituídos de lideranças modernas, competentes e com visão de futuro, incapazes de construir o projecto reformista de que Portugal tanto carece (que o force a sair, pelo menos, da cauda dos países menos desenvolvidos da Europa) arrastam-se ao sabor dos interesses corporativos e em promessas de teor analgésico como resposta às preocupações expressas na rua em catadupa. Por comparação com as ciências náuticas, a política portuguesa é, hoje, navegação de cabotagem, e esta campanha eleitoral parece estar cada vez mais próxima da de uma associação de estudantes do ensino secundário.
É por isso preocupante que, em vésperas de um acto eleitoral, o silêncio paire sobre temas candentes, como os relacionados com a situação presente e futura de Portugal face aos contextos políticos internacionais, e com as suas obrigações decorrentes da integração na Europa, bem como face aos compromissos assumidos, nomeadamente, no âmbito da OTAN.
Entretanto, a guerra decorre na Europa e no Médio Oriente, são múltiplas e diversificadas as ameaças que ensombram várias regiões no mundo, haverá eleições nos Estados Unidos da América e a Europa pode ser chamada a um investimento sem precedentes na sua defesa, comprometendo as prioridades nas tradicionais “áreas de conforto”. E assim também nós.
Seria, eventualmente, de todo o interesse que Portugal enxergasse um pouco mais para além da linha de costa, meio século depois de Abril…
A democracia não pode ter elasticidade tal que chegue a morder a própria cauda. É um contrassenso, um paradoxo.
Quando, ainda jovem, numa curta incursão pela política, fui eleita representante da minha freguesia para a Assembleia Municipal do concelho, tive uma experiência pouco agradável. Serviu para concluir que a minha contribuição como cidadã nesta área ficaria por ali ou que não ultrapassaria mais as “fronteiras” confortáveis da minha terra, onde já tinha aprendido com os mais velhos que o único partido que existia era o interesse da freguesia.
Naturalmente, as reuniões da Assembleia eram sempre antecedidas por outras, no âmbito de cada partido, como forma de debater os assuntos previstos na ordem de trabalhos, de concertar opiniões e de acertar o sentido de voto nas deliberações que se impunham.
Nessa mesma altura, uma indústria poluente planeava adquirir terrenos, logo à entrada da minha freguesia, a fim de aí construir uma nova unidade fabril. O assunto tinha já dado polémica entre a população, que juntou centenas de assinaturas num abaixo-assinado contra a implantação da fábrica naquele local emblemático, com impacto a nível ambiental e paisagístico. Na freguesia, sede da primeira associação ambiental da região, “Amigos dos Açores”, já havia inclusivamente gente que se dispunha a acampar nos terrenos, caso fosse necessário uma ação mais radical para impedir as primeiras obras.
Ora, na reunião preparatória para a Assembleia do partido em que eu me encontrava como independente, tive de enfrentar os restantes membros a quem interessava a instalação da fábrica com a justificação de que traria mais-valias económicas ao concelho. Contra todos, mantive o meu voto e, na hora da verdade, foi, obviamente, contra que votei relativamente à intenção da empresa em adquirir aqueles terrenos que, se ainda bem me lembro, eram considerados terrenos agrícolas, sem autorização de construção, a não ser que a Câmara alterasse o PDM. Fiz o que era o meu dever. Para além da defesa da convicção pessoal, estava ali, sobretudo, como representante da vontade do povo que me elegeu. Fui alvo de críticas entre os membros da área política em que me inseria, mas nenhum interesse se sobreporia à vontade coletiva que representava. “Que outro valor mais alto se alevanta”- justifiquei, citando o verso camoniano. E este valor era o de agir em conformidade com a vontade da minha freguesia e, sobretudo, com a liberdade de decidir convictamente, nunca seguindo instruções alheias a este compromisso.
Desde cedo, pois, percebi que pertencer a um partido, mesmo com o rótulo de independente, implica uma disciplina de voto, um seguidismo, ainda que a defesa de um interesse divirja da convicção pessoal, a obediência a uma liderança avessa a objeções de consciência ou a pruridos de outra natureza que não a do juízo da facção política, que, justamente por ser facção, é apenas uma perspetiva, uma parte da verdade. A verdade partida. Nunca a verdade inteira.
Como tal, cada partido é uma organização com princípios totalitários. Percebo agora, e depois de ter terminado a leitura de Pela Supressão dos Partidos, de Simone Weil (1909-1943), que já tinha esta percepção, identificando-me com a sua argumentação. Simone Weil preconiza a ideia de que um partido não promove o bem coletivo, mas o dos seus membros. Apresenta uma série de argumentos para concluir que os partidos são um mal a evitar, sendo o totalitarismo “O pecado original dos partidos no continente europeu”. Explica, a que é considerada uma das maiores pensadoras do século XX, que “A democracia e a maioria não são bens, mas meios com vista ao bem”. A filósofa francesa, que testemunhou os horrores da Segunda Guerra Mundial, lembra que “Se a República de Weimar, em vez de Hitler, tivesse decidido pelas vias parlamentares e legais colocar os judeus em campos de concentração, as atrocidades praticadas não teriam um átomo a mais de legitimidade do que têm agora.”, para sublinhar que as decisões não se tornam mais justas ou éticas só porque são tomadas em democracia e não por um ditador. É preciso que a finalidade da democracia nunca se perca de vista: o bem de todos. O contrário não é concebível, como já mostrou a história. Tão inconcebível como dar legitimidade a partidos que defendem o racismo, a xenofobia e põem em causa direitos humanos fundamentais. A democracia não pode ter elasticidade tal que chegue a morder a própria cauda. É um contrassenso, um paradoxo. Como diria de forma lapidar a filósofa, “Só o que é justo é que é legítimo”!
Como se coaduna então um regime democrático, cujo fundamento é a liberdade de expressão e de opinião, com um sistema partidário, por definição, obtuso, rígido, cujo funcionamento se rege pelo pensamento único? Como compreender que o bem comum seja defendido por políticos cujo superior interesse é impor a consumação da sua ideologia? Esclareço, parafraseando Weil: quando alguém diz “como socialista, penso que….” ou ” como social-democrata, penso que…” está a impor apenas a sua verdade. Ou seja, é tão absurdo como afirmar “como indivíduo de cabelo escuro, penso que…” a menos que – acrescento eu – os indivíduos de cabelo escuro tenham algo contra os indivíduos louros, o que demonstra que o que uma parte quer vai prejudicar a outra parte. Seria absurdo ouvir um governante açoriano garantir que “como açoriano social-democrata, quero o melhor para os Açores” ao invés de “como açoriano, quero o melhor para os Açores”! O bem coletivo está acima de interesses de grupos ou de partidos. E nem sempre isto é tão óbvio.
A falência dos partidos políticos e a fragilidade da democracia são indissociáveis. No entanto, é o melhor sistema que fomos capazes de conceber. Temos é de manter a confiança nas suas virtudes, daí que seja importante o seu constante aperfeiçoamento. Tornar a democracia mais próxima dos cidadãos, cada vez mais descrentes das instituições, torná-la mais direta e sem intermediários nos quais não identificamos os nossos interesses nem reconhecemos legitimidade para lhes dar prosseguimento. Clarifico que não defendo o fim dos partidos, até porque não faço ideia de como se poderia organizar a política de outro modo. Simone Weil não propõe alternativas concretas. Sendo catalogada como anarquista, o seu pensamento é livre acima de tudo, pretendendo mostrar que os partidos acabam por ser uma limitação da democracia e um mal, porque só existem sustentados pela ambição de poder.
Não nos podemos esquecer que o tempo de Weil foi determinante no modo como pensou o mundo. A verdade é que hoje vivemos tempos incertos e, de certo modo, igualmente ameaçadores. A designada “cultura flutuante”, decorrente da globalização, do triunfo da opinião sobre a verdade dos factos, transformou o mundo atual, pós moderno, e os partidos, que antes pareciam estáveis, estão igualmente tomados pela cultura de celeridade e de interpretação ligeira da vida e do mundo. Tudo é móvel, instável, imprevisível, inclusivamente as estruturas dos partidos que outrora foram tidos como referências. Os politicos, contaminados por esta efervescência dos dias, já não analisam nada com visão de futuro nem alicerçados na história passada. É tudo pensado para o imediato do flash ou da última hora noticiosa. Assistimos na cena política do nosso país a mesma frivolidade das páginas de uma revista cor de rosa, alimentada da intriga entre quem hoje acasala com quem e amanhã já é com outro… nem o contexto tão perigoso e incerto da política externa é tido em conta.
Ontem, li nas redes sociais os currículos de alguns deputados ao parlamento açoriano, cuja única profissão é…deputado. É caso para dizer que o carreirismo político é a face mais ignóbil da teoria de Weil. Que interesse maior defenderá um carreirista politico se não o do próprio? À memória, vem-me um detalhe caricato que ilustra bem a ideia. Quando fazia parte do corpo docente de uma escola cuja direção era nomeada politicamente, a sua gestão era de tal forma déspota que, num conselho pedagógico, em que se debatia novas regras de funcionamento, a própria representante da secretaria da escola votou a favor da proposta do director para proibir os seus funcionários de beber água pelas garrafas durante o expediente! Ora, aí está um exemplo caricato de como alguém considera em primeiro lugar a sua manutenção no cargo e as boas graças do director em detrimento do interesse comum. Já alguém disse que o diabo está nos detalhes… é deles que se parte para latitudes mais amplas. Igualmente a propósito, questiono como é possível ensinar democracia numa escola gerida deste modo? Parece que é o caso da maioria das escolas no continente…
A mesma questão poder-se-ia colocar para o modelo político que temos. Como é possível consolidar, então, a democracia com um sistema partidário tão pouco fiável no que ao interesse comum diz respeito? Como se pode acautelar o bem de todos, sem que a harmonia e o equilíbrio entre os diversos grupos sociais sejam afetados? Julgo que a resposta está mais acima. Urge, pois, o aperfeiçoamento da democracia. No ano em que se celebra 50 anos sobre Abril, era mais que oportuno que se refletisse e debatesse o estado do nosso sistema político. Seria importante, por exemplo, partir das estruturas que já temos, das autarquias, que são os postos de representatividade mais avançados no terreno, para se constituir círculos uninominais – é uma alternativa viável – , com ligação direta às populações locais, dando-lhes voz e respondendo perante as mesmas. Acabava-se a desresponsabilização política tão em voga e o descrédito nos tais deputados, nomeados pelos partidos para fazer número e que arrastam o traseiro pelas cadeiras, que querem manter a todo o custo, por sucessivas legislaturas. É este o sistema que temos, com honradas exceções, que já são poucas. Quem será, pois, o governante com coragem de ter a iniciativa e agir em nome do bem coletivo e da saúde da democracia em primeiro lugar?
Será que na UE se desconhece que esta guerra é considerada existencial por Moscovo? Na recente Conferência de Segurança de Munique, representantes ucranianos voltaram a repetir o pedido de armamento nuclear, que Zelensky já fizera antes da invasão. Será que a UE percebe que satisfazer essa enormidade incendiaria a Europa?
Há dois anos a Rússia invadiu a Ucrânia. Com isso, a guerra civil ucraniana, iniciada em 2014 entre Kiev e os territórios russófonos de leste em processo de secessão, transformou-se numa guerra internacional, em dois registos. De grande intensidade, no campo de batalha que opõe exércitos russos e ucranianos. De baixa intensidade, mas com forte potencial de escalada, entre Moscovo e os países da OTAN, que têm contribuído maciçamente para o esforço de guerra de Kiev. Para além das centenas de milhares de mortos e estropiados e milhões de refugiados, esta guerra já causou danos económicos e sociais profundos, particularmente, na qualidade de vida dos cidadãos europeus. O Parlamento Europeu divulgou em dezembro os resultados de um estudo de opinião (Parlementer Survey 2023) que não deixa margem para dúvida: 37% dos inquiridos revela ter dificuldade em pagar as suas contas, seja temporária ou permanentemente; 36% considera como prioridade investir no combate à exclusão social; 34% reclama mais apoio à saúde pública. O processo de entropia e empobrecimento europeu irá continuar, pois as forças inerciais que o alimentam são fundas e poderosas. A questão central consiste em saber se esta queda ainda pode tornar-se numa catástrofe bélica de proporções incalculáveis. Para avaliar as possibilidades de evitar, que além dos anéis possamos perder os dedos, importa analisar, primeiro, o modo como na UE se pensa a natureza desta guerra, e depois, as perspetivas no plano militar.
A guerra trava-se com armas, mas é conduzida por ideias. Depois da invasão russa, houve um sinal muito inquietante. A imprensa e os políticos europeus, mimetizando o registo que vinha dos EUA, classificaram o ataque de Moscovo como uma “guerra não provocada” (unprovoked war). Uma coisa é a condenação da evidente violação do direito internacional por parte da Rússia, outra bem diferente é pretender apagar três décadas de acontecimentos, estudados por centenas de cientistas sociais, nomeadamente nos EUA e Europa. Pelo contrário, a partir do momento em que se passa ao estado de guerra o imperativo é compreender. Só a análise empírica e racional exaustiva das causas permite encontrar o caminho de saída para o conflito. O tema da Ucrânia esteve sempre bem vivo nas relações do Ocidente com a Rússia. Em maio de 1995, Michael Mandelbaum escreveu, profeticamente, na Foreign Affairs: “Não é exagero afirmar que a expansão da OTAN será boa ou má em função do seu efeito na coexistência pacífica da Ucrânia com a Rússia.” Ao longo de décadas, diplomatas, como o decano George F. Kennan, políticos como William Perry, ou Kissinger alertaram para a tempestade em formação. Na Academia, vozes respeitadas e sábias, como as de Stephen Cohen, John Mearsheimer ou Stephen Walt, sinalizaram a rota de colisão com os interesses de segurança, permanentemente invocados pela diplomacia russa. Os estrategistas de Washington preferiram impor a narrativa da demonização, que não cessa se ser alimentada. Em 2014, Kissinger escreveu a esse propósito: “Para o Ocidente a demonização de Vladimir Putin não é uma política, mas antes um alibi para a sua ausência”.
Qual é hoje o plano ocidental para esta guerra? No caso da UE, além de nada ter feito para evitar o conflito (Merkel e Hollande confessaram à BBC ter enganado Putin nos Acordos de Minsk), é gritante a mistura de ignorância e imprudência. Nos atuais dirigentes europeus mais relevantes, nem um parece perceber os riscos de uma guerra direta com a maior potência nuclear do mundo. Se se tivesse concretizado o cenário, altamente improvável, de a Ucrânia ter sucesso contra a Rússia no plano convencional, será que as capitais europeias têm consciência de que essa “vitória” poderia ser o preâmbulo do uso de armas nucleares táticas? Será que na UE se desconhece que esta guerra é considerada existencial por Moscovo? Na recente Conferência de Segurança de Munique, representantes ucranianos voltaram a repetir o pedido de armamento nuclear, que Zelensky já fizera antes da invasão. Será que a UE percebe que satisfazer essa enormidade incendiaria a Europa? Em fevereiro de 2023 defendi aqui que só uma “paz imperfeita”, como a de 1953 entre as Coreias, poderia evitar o pior. Com os EUA paralisados até novembro de 2024, e a UE em completa desorientação, ainda há muitas frestas abertas para surpresas desagradáveis.
O frenesim bélico está a destruir aquilo que a UE tinha de melhor, incluindo uma liderança no combate ambiental e climático. Falhámos uma política de boa vizinhança. Ainda nos dividimos na invasão do Iraque, mas alinhámos na pilhagem da Líbia e na tentativa de destruir a Síria. A Rússia é diferente. Faz parte da nossa geografia e milenar história comum. Para coabitarmos não precisamos de nos amar, mas é imperativo o respeito mútuo. Entrámos no abismo, a tentar esconder os nossos erros com os nossos preconceitos. Fizemos mal, mas suspeito que ainda há atrevimento suficiente para fazer pior.
Vivemos doentes de factos comezinhos, alérgicos, mas dependentes, das evidências de natureza ruim. Como será que nos sucedeu isso de termos de ser comedidos, razoáveis. De termos de pensar no que mais vende, ao invés do que mais arrebata; de nunca ferir suscetibilidades, mesmo que se mate a verdade evidente…
Neste momento, vogamos suspensos. É certo. Foi criado.
Ícaro: terá ele atingido o calor do sol, muito perto do rosto, conquistando um raio para a alma, para sempre, ainda que o instante tenha sido apenas breve e luminoso? Terá derretido com as asas a hesitação e o medo, porque afinal, ter chegado próximo é quase igual ao definitivamente conseguido?
Da Vinci:
Terá ele sentido a fome de vento e altitude, a inveja de pairar no topo, de ver do alto, de singrar o firmamento? A vertigem de saber que, ao controlar a direção, sem ruas ou caminhos, o ar suportará a máquina, tal como a água sustenta os navios?
Bartolomeu de Gusmão:
Terá valido a pena o escárnio da corte inteira, para provar o colchão do ar, experimentar no corpo um golpe de ave, a porta da evasão, conspirar com os anjos, elevar-se, num maravilhamento? Terão todos eles entrevisto a leveza da alma sustentada, a fuga ao pó da terra e à gravidade, o soltar da consciência em flocos de sombra e luz?…
Neste momento é possível vogar suspenso. É certo. Foi criado.
Talvez bem na terra, contra o chão do mundo, nos tenham semeado; mas estes bolbos de humanidade – nós – cresceram como plantio de ânsias por ilimitado oxigénio, visões de mais espaço, ambições de arco-íris e azul. Talvez bem na terra, mas debaixo da campânula translúcida e enfeitiçante do céu…
Adorno as Oliver Hardy, Erwin Wurm (Áustria,1954-)
Porém hoje, nem fome nem vertigens: do alto de um poder que engana, somente constatações; nem grandes estadistas nem etéreas sinfonias, mas o coice agreste de uma realidade prática, económica e igual. Agora mesmo, com um punhado de impossíveis conquistado, parece estar a acabar o arroubo, ou faltar-lhe o combustível de loucura, de ousadia, pois impera um desencanto tão grande, que quase se esgota em condenar as utopias e em lamentar aquilo que já não é. Vivemos doentes de factos comezinhos, alérgicos, mas dependentes, das evidências de natureza ruim. Como será que nos sucedeu isso de termos de ser comedidos, razoáveis. De termos de pensar no que mais vende, ao invés do que mais arrebata; de nunca ferir suscetibilidades, mesmo que se mate a verdade evidente… De repente é a inteligência artificial, a sensação virtual, a emoção casual, a arte comercial, a política consensual… Tudo o que é magnífico choveu-nos do alto, na imensidão das alturas se opera – tal como a aurora boreal, os eclipses, o Olimpo ou a trajetória dos cometas. E foi por isso que todo o homem mereceu, esperou, frequentar a estrada aérea.
E agora nós – de novo estas naus que trazem no bojo tantas possibilidades furtivas – magníficas como a partida e o regresso – um traço aéreo de sonho, audácias e conquistas; torres voadoras de degredos, espantos e delícias: naus contemporâneas, naus de vento – precisamos delas. Todos, ainda, deveríamos trilhar novos percursos, expeditos caminhantes, a nossa parte de nómadas, renascida do âmago do sedentarismo. Portanto, estamos enganados, no nosso repouso – não é ainda hoje que se cumprem os tempos; como se o voo fosse mais um preâmbulo, porque toda a nossa vida tem sido um ensaio para o que pode ser feito. Não é ainda aqui que moraremos para sempre. Como se toda a humanidade ainda pudesse ser curada; como se ainda planeasse conquistar mais dentro de si o universo. É ainda um dirigível, enquanto formos ao leme; ainda uma promessa, enquanto estivermos crentes; fazer parte do sonho é alimentar as alturas. Ousadia e coragem: esta do homem que abre a mão ao nenúfar calamitoso da sorte, para mudar sempre e sempre a metamorfose da sua condição. E do alto veremos a terra que erguemos: esta, que só pôde ser engendrada com os pés bem assentes no céu…
A campanha eleitoral funciona como se houvesse um pacto não-escrito, inscrito no inconsciente dos nossos representantes. Todos os atores políticos convergem na aceitação da ficção de que de dentro da nossa pequena casa portuguesa ainda é possível, nos condicionamentos atuais, vislumbrar um futuro viável.
Apesar de todos os protestos sociais, a campanha eleitoral vai correndo serenamente. Contudo, a relativa bonança dos debates parece ser semelhante à calma antes das grandes tempestades. Os líderes partidários discutem escolhas orçamentais ao serviço de diferentes políticas públicas, como se isso dependesse das suas preferências e talento pessoais. Na verdade, os aparentes dissensos escondem um perigoso consenso. A campanha eleitoral funciona como se houvesse um pacto não-escrito, inscrito no inconsciente dos nossos representantes. Todos os atores políticos convergem na aceitação da ficção de que de dentro da nossa pequena casa portuguesa ainda é possível, nos condicionamentos atuais, vislumbrar um futuro viável.
O problema da verdade, na política como na vida, é que nós podemos esquecê-la, mas ela volta sempre para cobrar o imposto devido pelo nosso esquecimento. Há 50 anos, a questão nacional era o nosso isolamento internacional. É verdade, como escreveu Franco Nogueira em 1971, que em toda a África meridional nenhum Estado ousava dar um passo sem saber o que faria Lisboa. Mas isso servia de fraco consolo num velho império europeu onde até as elites já estavam cansadas da pobreza do povo e da absurda falta de liberdades básicas.
Com um coração, muitas vezes ingénuo, abrimo-nos inteiramente à nossa condição europeia e ocidental. Infelizmente, com raríssimas exceções, o entusiasmo costuma ser inversamente proporcional à lucidez das decisões. Entrámos no processo da construção europeia, determinados a ficar no “pelotão da frente” (sem nunca se aprofundar as reais implicações dessa metáfora vinda do ciclismo). Depois de uma hesitação breve de Cavaco Silva, mergulhámos de cabeça e olhos vendados no caldeirão da união monetária.
Em 2008 começámos a pagar a conta. Não foi só a enorme dívida pública acumulada, que poderia ter sido minimizada como ficou demonstrado pela conduta imposta por Draghi ao BCE a partir de 2012. Fomos entregues ao pânico dos mercados e, com o ultimato da troika, vimos setores fundamentais da economia serem transferidos para centros externos de decisão.
Mas o nosso compromisso ocidental inclui a NATO e a hegemonia militar dos EUA. Apesar de já não existir o império que justificava o alinhamento com a potência marítima dominante, e de termos usado o orçamento que deveria ser da Defesa como mealheiro para outras necessidades consideradas mais urgentes, deixando as Forças Armadas em estado lastimável, continuámos fervorosos atlantistas.
Fechámos os olhos à mudança gradual da liderança dos EUA, no sentido de um unilateralismo cada vez mais aventureiro e beligerante. Os aliados foram arrastados ou hostilizados em sucessivos conflitos que semearam o caos nas fronteiras da UE, de 1999 em diante. A guerra na Ucrânia e o genocídio de Israel em Gaza não nasceram sem causas profundas. A opção presidencial Biden ou Trump é um sintoma de grave doença democrática nos EUA, e um perigo para o mundo.
Tudo isto está quase ausente do debate eleitoral. As questões-chave da paz e da guerra, num tempo de armas nucleares, a viabilidade de uma economia capaz de suportar o Estado social sem devorar o ambiente, deixaram de ser objeto de política, para mergulharem numa espécie de destino. Em 1974, o nosso problema era um crispado e cansado isolamento internacional. Em 2024, o problema, criado também por negligência própria, é a coabitação num condomínio crescentemente asfixiante e em perigosa deriva.
[…] caberá perguntar se a representatividade dos diferentes agrupamentos reveste toda ela a mesma qualidade, ou seja, se quem representa 43,6, 37,2 ou 9,5 por cento dos votos tem o mesmo valor de quem representa 2,6 ou até 1,7 por cento. Não tem, com certeza, e, por isso, em certos parlamentos europeus, nenhuma força política ganha assento parlamentar se obtiver menos de 5% dos votos expressos.
O hemiciclo da Assembleia Legislativa Regional (ALR) volta a exibir as mesmas cores de que se revestiu em 2020. Das onze forças políticas presentes a sufrágio, três delas arrecadaram um somatório à volta de 90% dos votos, enquanto as outras três que festejaram a vitória do apuramento alcançaram um total de pouco mais de 6% com um deputado cada.
A segmentação do quadro parlamentar tem vindo a consolidar-se e será até possível que venha a crescer no futuro. Este fenómeno costuma ser acolhido e até saudado pelos comentadores políticos como sinal de pluralismo e de maturidade democrática, embora, nas campanhas eleitorais, os dirigentes partidários, quando vislumbram a perspetiva do encargo da governação, não escondam o sentimento de desconforto que lhes provoca essa proliferação. Não se inibem, por isso, de pedir ao eleitorado maiorias absolutas ou pelo menos confortáveis, para não terem depois de navegar ao sabor, muitas vezes, das mais variadas e inconciliáveis conveniências. A pluralidade de opiniões será sempre vantajosa para enriquecer as decisões a tomar, mas é bem diferente da pluralidade de exigências a que depois se assiste, muitas vezes na base duma argumentação impressionista e duma impertinente intemperança afirmativa, que chega a perder de vista o interesse público.
A experiência vivida na última legislatura deverá levar-nos a refletir sobre este novo figurino de representação parlamentar, que tem vindo a mostrar-se mais plural, conforme também acontece a nível nacional e europeu. É certo que todos os eleitos detêm incontestável legitimidade representativa, o que os habilita a intervir no parlamento, de pleno direito. Todavia, caberá perguntar se a representatividade dos diferentes agrupamentos reveste toda ela a mesma qualidade, ou seja, se quem representa 43,6, 37,2 ou 9,5 por cento dos votos tem o mesmo valor de quem representa 2,6 ou até 1,7 por cento. Não tem, com certeza, e, por isso, em certos parlamentos europeus, nenhuma força política ganha assento parlamentar se obtiver menos de 5% dos votos expressos. Nestes casos, a simples quantidade não é suficientemente determinante, pelo que a representatividade parlamentar só será reconhecida quando uma força política se qualificar com um quantitativo mínimo de votos, a que se atribui ou reconhece valor ou significado.
Não se prevê que os denominados partidos menos representativos desta legislatura venham a ter a relevância que tiveram na anterior, em que um deles conseguiu a proeza notável de ser a gota de água que fez transbordar o copo. Todavia, tal poderá vir a acontecer por força de outros alinhamentos resultantes de altercações entre a Assembleia, o Governo e os diretórios nacionais dos partidos, uma dialética sempre sujeita a humores que ditam as mais inesperadas coligações ou fazem deflagrar zangas e cisões, sempre à flor da pele nas formações mais inorgânicas e voluntariosas. Assim, na ALR, poderá ocorrer o que muitas vezes acontece nos jantares festivos das famílias, em que, estando todos juntos à mesa, uns satisfeitos outros contrafeitos, subitamente irrompe a birra duma criancinha que ninguém é capaz de acalmar. O pai ou a mãe lá o conseguem tirar da mesa e levar até aos fundos da casa para lhe aplacar as fúrias, algumas vezes com êxito, mas outras não. Para não correrem esse risco, algumas famílias mais convencionais seguem a etiqueta de só admitir à mesa meninos e meninas a partir de uma certa idade, o que lhes permite, pelo menos à partida, contar com alguma serenidade ao jantar.
Dada a configuração da nova ALR, muita coisa poderá vir a acontecer, desde a queda do governo, logo à nascença, até ao vaivém taticista de porfias ou consensos, suscetível de gerar uma aritmética assassina ou salvadora. E aí, as opções dos partidos que representam largas faixas do eleitorado podem, outra vez, ficar dependentes de um ou dois deputados que, valendo apenas por um pequeno número de votantes, se tornarão então, como é costume dizer, no fiel da balança ou, na pitoresca expressão popular, serão a sardinha que põe o burro ao chão!
José Luís Brandão da Luz
“Elogio”: Tem-se elogiado o eleitorado que, nestas eleições, se levantou do sofá para ir votar. Na verdade, a diferença entre votantes nas últimas duas eleições parece que andou a rondar os doze mil, o que não deixa de ser animador! Mas talvez o montante dos que se mobilizaram agora até seja maior, se deduzirmos ao número de votantes de 2020 todos aqueles que entretanto perderam a capacidade de votar.
“Pergunta sem resposta”: As novas inscrições nos cadernos eleitorais ascendem a pouco menos de mil e quinhentas, onde se incluem os jovens que nos últimos quatro anos se tornaram cidadãos eleitores. Para onde teriam ido os votos da nova geração?
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