Por José Luís Brandão da Luz
A introdução inesperada do tema pelo Presidente da República fez soar vários alarmes, animando o debate e o comentário político que, apesar de alguns excessos, têm vindo a desatar alguns nós do problema. Se é redutora a sua equação em termos de dívida financeira, a favor de incertos ou desconhecidos, não parece destituída de sentido a alusão feita pelo Presidente.
Qualquer momento do passado pode ressurgir como faísca incendiária de um fogo inesperado. O tema da escravização e da aculturação forçada de formas ancestrais de pensar e de viver de povos de África e do Brasil esteve muito arredado dos holofotes da nossa história, mas não permaneceu inerte e emergiu com estrondo, como se sabe, pela voz do Presidente da República. O assunto não é desconhecido e encontra-se guarnecido por trabalhos de muitos investigadores, que o têm estudado a partir da sua origem antiga e extensão universal.
Henrique Raposo, num artigo do Expresso, edição on line da passada quinta-feira, 2 de maio, «Quando os escravos eram brancos e os opressores negros», refere vários estudos que dão conta da prática da escravatura entre gregos, romanos e nórdicos, mas também no norte de África e no Índico, e lembra o papel do ocidente e do cristianismo no movimento abolicionista. Já antes dos europeus terem chegado à África, «os árabes e berberes faziam tráfico de escravos negros através do deserto do Sara», lembra João Pedro Marques, no Observador de 1 de maio, em «Desta discussão não nasce a luz». Refere ainda que a generalização da prática da escravatura em vários países tira força à ideia de que o tráfico transatlântico foi único em desumanidade e em ganhos económicos. Certamente que a prática generalizada do fenómeno não diminui a responsabilidade que hoje nos é lançada em rosto, mas ela terá de arrastar consigo muitas cumplicidades locais, que estão estudadas, e vozes poderosas que se opuseram, que são também conhecidas.
Em plena expansão colonial, distinguiram-se na luta contra a escravatura e saíram em defesa dos povos ameríndios os maiores expoentes da escolástica peninsular, amplamente estudados por Giuseppe Tosi em Aristóteles e o Novo Mundo: a Controvérsia sobre a Conquista da América (1510-1573), uma publicação de 2021. Bartolomeu de las Casas não se cansou de relatar a Filipe II e ao Papa as atrocidades cometidas na colonização dos povos indígenas, compôs tratados e obras históricas inteiramente dedicadas à causa dos índios. As denúncias da Brevísima relación de la destrucción de las Índias são uma amostra das atrocidades silenciadas pela versão dos conquistadores. A ele se juntou Francisco Vitória, Domingo de Soto e outros, que se opuseram aos direitos de conquista e dominação dos indígenas, polemizando com Sepúlveda, que se perfilava do lado da coroa espanhola, a favor da causa vencedora. Em Portugal, António Vieira foi o exemplo mais eloquente de luta sem tréguas a favor dos judeus, e a causa dos índios fê- lo percorrer o Brasil e atravessar várias vezes o Atlântico em busca de medidas que os defendessem da cobiça dos colonos.
Ao exumar-se hoje do esquecimento o lado sombrio da colonização não estamos só a reabilitar os que pelo exemplo e a palavra denunciaram, no tempo e lugar próprios, as atrocidades que dizimaram e agrilhoaram povos indefesos. Para além de lembrar a memória das vítimas da exploração e de cumplicidades traiçoeiras que os conduziram à escravatura, somos interpelados a realinhar os nossos retratos de família e a tomar consciência de que não atravessamos em estado de graça a nossa longa história. António Rodrigues, no Público da passada quinta-feira, 2 de maio, refere vários estudos sobre o tráfico negreiro que têm chamado a atenção para a dimensão da tragédia. Um deles estima que, entre 1500 e 1860, dos 12,6 milhões de africanos que foram capturados pelo trabalho escravo nas Américas, cerca de 5 milhões foram levados pelos portugueses.
Uma cifra que, só por si, permite ajuizar que as polémicas declarações do Presidente da República se acham bem documentadas em termos de investigação histórica. A temática, aliás, tem sido debatida por vários movimentos e organizações, nomeadamente o Fórum Permanente para Pessoas Afrodescendentes, criado pelas Nações Unidas em 2021, onde recentemente várias organizações participantes censuraram a indiferença que Portugal tem mostrado sobre o assunto.
A introdução inesperada do tema pelo Presidente da República fez soar vários alarmes, animando o debate e o comentário político que, apesar de alguns excessos, têm vindo a desatar alguns nós do problema. Se é redutora a sua equação em termos de dívida financeira, a favor de incertos ou desconhecidos, não parece destituída de sentido a alusão feita pelo Presidente. Pese embora os aspetos criticáveis da inesperada iniciativa, designadamente o seu efeito explosivo sem aparente concertação programática de resultados, poucos têm querido perceber que a história das leituras unilaterais e dogmáticas mostrou a sua fragilidade e arrastou atrás de si um rol de preferências, interesses e convicções que decidem, em cada época e em cada geografia, o que vai sendo histórico. É tempo de assumir que nenhum povo é capaz de atravessar a sua história em completo estado de graça e que uma cultura da lusofonia não poderá deixar de lado a clarificação das zonas que ensombram um passado comum.
José Luís Brandão da Luz
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