Confino, logo penso

Sentimentos como os de perda de identidade, individual ou colectiva, de ausência de sentido para a existência, de descrença e de frustração pela impossibilidade, enfim, de uma vida boa e de concórdia assombram, ciclicamente, os homens. Em épocas distintas e pelos motivos mais díspares, ou nem por isso, raras foram as gerações que não conheceram períodos de apogeu e de decadência. E raras vezes, muito embora apercebendo-se do caminho que as conduzia para o abismo, foram capazes de o evitar. Dada a repetição do fenómeno no tempo, estas tendências ou inclinações parecem indissociáveis do modo específico de ser humano, ainda que este seja, em boa parte, moldado a partir de realidades sociais construídas pelos próprios homens. Contradições que não deixam de causar alguma perplexidade…

Guerra e Paz, grande mensagem de Portinari ao mundo, fica em exposição em  SP até 20 de maio - Nacional - Estado de Minas
Guerra e Paz, Portinari (Brasil, 1930-1962)

Também, e se por um lado a civilização construiu um mundo global dele retirando extraordinárias vantagens, por outro, fomos incapazes de barrar o caminho a uma pandemia que, apesar de tudo, a ciência havia previsto de alguma forma. E, depois, feito o mal, vem o pior, e a morte de milhões de pessoas é, numa primeira fase, assacada à impreparação para enfrentar o desconhecido, para, numa segunda, passar a constituir mais um gigantesco passo do génio humano no domínio da todo-poderosa tecnociência.

E, assim, provavelmente, porque não toleramos a ideia de que o mal dos outros nos possa calhar, ou por temermos que nos faltem os bens essenciais à sobrevivência, o maior dos egoísmos conduziu ao maior dos altruísmos e, do nada, choveram milhares de milhões para uma investigação genética bem sucedida, que rapidamente, qual passe de mágica, fez aparecer as vacinas milagrosas.

Vai daí, e como sempre ocorre quando o sentimento de insegurança e consequente consciência da insignificância da espécie se apodera de nós, salvar-se-ão os mesmos, e morrerão os de sempre, a massa pobre, os infortunados deste mundo, a mão de obra escrava do século XXI (responsável pela manufaturação de produtos de luxo, colocados em exibição nas boutiques da Europa das “bazucas” ), essa maioria informe e sem voz, em nome da qual a ONU se esforça, diariamente, para que não seja ostracizada, enquanto assobiamos para o ar, muito mais preocupados com o dia da nossa inoculação, que custa a chegar, ou nos vamos fixando na TV embasbacados com mais este outro prodígio do génio humano – a grande final da primeira etapa da epopeia marciana!

German actress Lil Dagover (1887-1980) in Fritz Lang's "The Destiny" ("Der müde Tod"), 1921 Dagover's career spanned between 1913 and 1979. She was one of the most popular and recognized film actresses in the Weimar Republic.

“Fratelli Tutti”, escrevia Francisco de Assis, mas talvez uns mais do que outros. Esta aldeia global, ao mesmo tempo que a todos fez vizinhos, isolou-nos em vez de nos aproximar, convertendo o individualismo, hiperbolizado pelo neoliberalismo, entre as virtudes do século. Colocou a desenfreada exploração capitalista, lá onde a solidariedade e o reconhecimento dos direitos humanos, a “amizade e fraternidade” (como diz Francisco, o Papa) deviam marcar presença. Mais grave ainda, como escreve o Papa na sua última carta encíclica, Fratelli Tutti, “a inesperada pandemia da Covid-19 deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.”

Os Retirantes (Portinari)

E é assim que os grandes antagonismos, a luta dos contrários, como diria Heraclito há algum tempo, muitas vezes violentos, quando não mesmo sangrentos, assolam a Humanidade com regularidade, encontrando a mola impulsionadora nas ideias e na acção humanas, sendo que, o fim em vista é sempre idêntico: o bem e a verdade que, em princípio, andarão ali para os lados da filosofia, da ciência, da política, ou da religião. É daqui, do seio destas esferas misteriosas e meio ocultas do saber, que brotam as revoluções e as crises, e os seus contrários, a paz, a prosperidade e o progresso que invariavelmente lhes sucedem, e assim por diante, em jeito de eterno retorno.

Mas por que é assim e não de outra maneira? Está determinado, por exemplo, que a paz apenas seja um intervalo (de descanso) entre guerras? Ou, pelo contrário, o projecto de uma paz perpétua, à maneira de Kant, pode ainda ser considerado como uma hipótese interessante ou, pelo menos, simpática, e pela qual pode ainda a vida valer a pena? Lá teremos de voltar a mergulhar nos tais saberes e procurar…

Os crentes, felizardos, procuraram e acharam, e dizem que tudo isto são problemas da razão que habita o mundo dos homens e que, portanto, sendo imperfeita, é insaciável. Por isso, o descontentamento e a insatisfação, a ânsia por conhecer, não nos darão tréguas, e a angústia e a frustração permanecerão connosco até ao fim dos tempos, o que, por sua vez, não se sabe o que é. Sabe-se, sim, que neste cruzeiro pelo Cosmos estamos todos, irremediavelmente, na mesma nave, pela fé e pela razão ou, provavelmente, por ambas convocados.

Luís Bastos

P.S. O Azorean Torpor apresenta, hoje, um novo logótipo. Trata-se de uma escultura sublime (o gosto é subjetivo) da artista Sophie Favre e que, por si só, dispensando descrição ou legenda, é capaz de se abrir à criatividade e imaginação de todos os leitores do “AT”, estejam ou não em modo de confinamento! Para os meus colegas professores de filosofia, e não só, pode constituir um bom começo de aula, sobretudo nestes tempos marcados por um enorme défice de entendimento…

Entretanto, se tiver algum problema técnico em visualizar o novo logótipo, talvez um simples click no cimo da página, à esquerda, onde se lê, AZOREAN TORPOR, o possa resolver.

O Decreto de 16 de Fevereiro de 1928 e a estocada final

Finalmente, os Açores (sobretudo S. Miguel) cantavam vitória com a aprovação do Decreto nº 15035, de 16 de Fevereiro de 1928, do Governo da Ditadura, e que respondia a algumas das mais importantes e antigas aspirações do 1º Movimento Autonomista dos finais do século XIX. De facto, agora, com letra de lei e, em larga medida, foi-se ao encontro das propostas de atribuição de autonomia financeira às Juntas Gerais, que passam a poder arrecadar e aplicar, de forma quase integral, as receitas geradas através dos impostos cobradas nos distritos, ao mesmo tempo que se livram dos encargos decorrentes dos serviços do Estado que por este passam a ser assumidos. Melhor não podia ser!

Mas tudo isto acontecia ainda a Ditadura se encontrava em estado embrionário, mais preocupada em alicerçar o seu próprio futuro do que em perder tempo com “bizarrias insulares” que, não obstante, se tornava importante acalmar, não fosse essa sempre presente ideia de independência ganhar novo fôlego e Portugal acordar um dia sem uma das suas províncias…

Revista “Os Açores”, Março de 1928

Por esta e por outras, o Governo da República joga pelo seguro, e envia o Coronel Silva Leal, natural da Praia do Almoxarife, Faial para os Açores como Delegado Especial (1927). E é este militar, ligado ao movimento que deu origem ao golpe de 28 de Maio de 1926, quem irá elaborar com a estreita colaboração de dois novos destacados líderes do 2.º movimento autonomista, Conselheiro Luís Bettencourt e José Bruno Tavares Carreiro, o projecto para uma “Província Autónoma dos Açores”. Este texto acaba na gaveta mas não será esquecido, servindo de suporte inspirador do futuro Decreto de 16 de Fevereiro de 1928.

Parecia ter-se, de facto, conseguido aquilo por que os açorianos há muito, abnegadamente, lutavam. E os novos autonomistas acreditaram que com a Ditadura era chegada a hora da realização do sonho!

Indiscutivelmente, o Coronel Silva Leal gozava de enorme popularidade junto da nova geração de autonomistas, e viu o seu apoio ainda mais alargado ao nomear, sabiamente, José Bruno Carreiro para seu chefe de gabinete civil…

Diário dos Açores, Fevereiro 1928

Entretanto, Salazar impunha-se, ganhava prestígio e aceitação geral no País, e aos olhos dos protagonistas do 2.º Movimento Autonomista, indefectíveis do Delegado Especial, o homem de Santa Comba emergia como figura salvífica, não só capaz de repor a “ordem” social e financeira no País, como, também, de, nos Açores, apoiar os ideais autonomistas agora tão bem plasmados no Decreto. No entanto, como escreve Reis Leite: “Quando da consolidação de Oliveira Salazar no poder, como todo poderoso ministro das finanças, no verão desse mesmo ano, as veleidades de autonomia financeira e a aplicação nos Açores do produto dos impostos aqui gerados ruíram. Para Salazar autonomias só de nome e com rédea curta em questões financeiras, porque o cidadão comum e para mais ilhéu, não era de confiança para arrecadar e gerir dinheiros.”

Com a repressão do Estado Novo que se seguiu, durante décadas, a própria palavra autonomia acabou por perder carga significativa e por ter um valor meramente residual. As elites sociais, políticas e económicas micaelenses, elas próprias, com pergaminhos autonomistas, acomodaram-se aos tempos, sendo que muitas das suas mais destacadas personalidades acabaram por se tornar responsáveis pela implantação e consolidação do Estado Novo nos Açores, como também o foi, e com muito vigor, o Coronel Silva Leal, que tendo chegado a ser o “Messias Açoreano”, para uns, e o “Benemérito Açoreano”, para outros, viria a ser, ainda, nomeado Comandante Militar dos Açores, destacando-se na repressão aos revoltosos do levantamento militar de 1931 que nos Açores ocorreu contra a Ditadura…

Assim foram os Açores, uma vez mais, enganados, humilhados e abandonados.

Meio século depois, veio o 25 de Abril e os Açores conseguiram! Mas isto é outra história que ainda decorre, e sobre a qual há muito para contar e, certamente, muito mais ainda por fazer. Entretanto, vigilantes, sempre!

Luís Bastos

NO DIA MUNDIAL DO (MEU) RÁDIO

Este foi o meu rádio, ou melhor, o receptor de ondas rádio responsável por me ter colocado, adolescente, em contacto com o Mundo, aqui, a partir da Ilha. Mais tarde, quando fui “lá para fora”, ainda no Portugal pré-democrático, foi através dele que conheci o amigo que ajudava a abrir as consciências para outras realidades, informando de forma mais credível, ainda que amordaçada, e que emitia programas que despertavam sensibilidades e gostos para géneros musicais menos comuns, à época, como, por exemplo, o Jazz – refiro-me, obviamente, ao Rádio Clube Português. Enfim, o pequeno objecto-prodígio da tecnologia daquele tempo, que os meus pais adquiriram numa viagem aos EUA e me ofereceram, rivalizava, pela qualidade do som, por todos apreciada (e cobiçada), com outros de médio e grande porte adquiridos, muitas vezes, para fazer mais vista no salão do que para fruição propriamente dita das potencialidades incorporadas…

À noite, sintonizando a “BBC World Service” em “SW” (Shortwave – quem não souber do que se trata, é só “clicar”), lá se ia conseguindo ouvir as “notícias”, livres de censura, incluindo (algumas) sobre Portugal e a guerra colonial; sobre a guerra no Vietname e as manifestações de protesto nos EUA (muitas); sobre o que disse, pela paz, Bertrand Russell; ou o último “grito” editorial de Sartre sobre o existencialismo e a liberdade. Todas as noites, a “BBC” dispensava-nos ainda uns minutos com curtas reproduções de algumas das músicas que compunham o “Top Ten” londrino.

Naqueles anos de ditadura, em dias e horas de que não me recordo, mas já noite dentro, chegava-nos a inconfundível voz de Manuel Alegre, desde Argel, onde se encontrava exilado, com o programa da oposição e de resistência ao regime, emitido pela rádio “A Voz da Liberdade”. Esta estação emissora, para além da fervorosa propaganda anti-fascista, informava-nos das acções repressivas do Estado através da polícia política (PIDE/DGS), das prisões de estudantes e seus nomes, das manifestações anti-regime, das acções de sabotagem de grupos organizados como a L.U.A.R., dirigida por Palma Inácio, ou a A.R.A., braço armado do P.C.P.

Seguiam-se, invariavelmente, e quantas vezes com indescritível custo, mais uns exercícios de matemática do “Palma Fernandes”, uma passagem pelas páginas intragáveis do compêndio de “História do Mattoso” ou, mais tarde, pelo calhamaço do “Bonifácio”, onde, na capa, se podia ler “Filosofia” – que grande descaramento! Mas o meu rádio, ainda assim, não desistia de mim.

Já “lá fora”, estudante de filosofia (por acaso), adormecia com o meu rádio relaxante, a emitir sem cessar. Desligá-lo seria tratá-lo mal, silenciar-lhe a voz. Até que um dia, de madrugada, sou subitamente acordado pela voz do Luís Filipe Costa, lendo um comunicado que o meu subconsciente deve ter assumido como estranho e algo imprevisível. Mas era mesmo, e o meu rádio viveu o tempo suficiente para anunciar a notícia do dia – chegou a Liberdade!

Algum tempo depois, não resistiu à onda do progresso, tendo sucumbido às mãos da fortíssima frequência modulada (FM).

Viva a rádio!

Luís Bastos

1964, The Ed Sullivan Show

A 9 de Fevereiro de 1964, há precisamente 57 anos, os Beatles realizavam o seu primeiro grande concerto na rede de televisão americana CBS, em Nova Iorque, no então popularíssimo The Ed Sullivan Show. Assistiram, em directo, cerca de 74 milhões de telespectadores.

Os Beatles com o apresentador de TV Ed Sullivan durante sua primeira aparição em seu programa em fevereiro de 1964
No palco da CBS, com Ed Sullivan, em Nova Iorque, em 1964

Aquele momento viria não só a despoletar uma mudança radical na sonoridade da música “Pop-Rock”, mas, também, nos estilos e posturas dos músicos em palco, cuja interacção estreita com o público, proporcionada pela corrente emocional gerada, jamais deixaria de constituir um elemento indispensável e integrador da definição e do sucesso do concerto “Pop-Rock”.

Boa parte da imprensa americana teceu duras críticas, quer às músicas, quer às letras (demasiado ousadas!) e, também, ao “visual”, excessivo para os costumes e exótico para os olhos, dos elementos da banda. Para a generalidade da crítica tratava-se de um fenómeno efémero. No entanto, ele persiste acompanhando-me vida fora…

Algumas das músicas tocadas no famoso The Ed Sullivan Show foram as hoje já “clássicas” “All My Loving”, “She Loves You”, “I Saw Her Standing There” e “I Want to Hold Your Hand”…

Os Beatles estão entre as cem personalidades mais influentes do século XX, segundo a literatura especializada. E que disto não haja dúvidas!

Luís Bastos

Precipitações?

Primeira

O Governo mandou retomar as aulas presenciais para o 3.º ciclo do ensino básico e para o ensino secundário e profissional, nos concelhos de Ponta Delgada, Lagoa, Povoação e Nordeste, já a partir de amanhã, 2.ª feira, dia 8. As escolas dos concelhos da Ribeira Grande e de Vila Franca do Campo continuarão com o regime de ensino a distância, e as de Rabo de Peixe e de Ponta Garça continuarão de portas fechadas.

Porque a situação pandémica parece estar, por ora, controlada, estarão criadas as condições para um regresso em segurança, ainda que não generalizado. E não há dúvida de que o espaço escola, enquanto tal, oferece garantias de segurança. Pior é o resto.

Todos sabemos que as oscilações numéricas que a Covid-19 vem conhecendo prendem-se, em boa parte, com os comportamentos individuais e com a aglomeração de pessoas, sobretudo, em espaços fechados. Acresce que estas pessoas que regressam amanhã às escolas (e refiro-me, sobretudo, ao ensino secundário) são jovens adolescentes. Por outro lado, todo o mundo logístico inerente ao funcionamento das escolas a estas faz confluir, num contínuo, gente das mais diversas áreas geográficas da ilha, como sejam, para além de pais, professores e funcionários, os fornecedores dos bares e cantinas, as empresas de manutenção e fornecimento de equipamentos, etc.

Museu da Física, Escola Secundária Antero de Quental, Ponta Delgada

Muito embora tudo possa estar sob apertado controlo, o certo é que, para jovens com reconhecida dificuldade de domínio sobre o complexo equipamento psicofisiológico em ebulição, há mais e melhor vida para além do confinadíssimo espaço físico das escolas, havendo, pois, que aproveitar a brecha o melhor que se puder e souber! E eles são milhares, como são largas centenas os que, logo manhã cedo, e fim de tarde, já noitinha, se fazem transportar nos autocarros que asseguram os transportes escolares. Por esta altura, os dias são frios e, muito provavelmente, as janelas das camionetas não servirão para arejar coisa alguma. Uma vez regressados a casa, no fim da jornada, muitos destes jovens de terceira geração juntar-se-ão às outras com as quais vivem sob o mesmo teto. Aos riscos, mais expostos não poderiam estar.

Quando nada prova que os números da Covid-19 não possam vir a agravar-se, qual é a pressa? Provavelmente estaremos a correr riscos desnecessários, esbanjando o “achatamento da curva” tão dificilmente alcançado. Melhor seria, pois, esperar mais algum tempo e, até, aproveitar para proceder à distribuição e testagem dos 5 mil novos equipamentos informáticos que a Secretaria Regional da Educação adquiriu (e bem) para minimizar as desigualdades no acesso dos alunos às novas tecnologias indispensáveis em regime de ensino a distância.

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Busto de Aristides Moreira da Mota (1855 – 1942), Palácio da Conceição, Ponta Delgada. Fotografia de João Freitas

Segunda

Com algum (desnecessário) estrondo, encerraram-se as portas da Casa da Autonomia! Tanta determinação aguça-nos a curiosidade sobre o plano heterodoxo, certamente, que a Secretaria Regional da Cultura, da Ciência e Transição Digital terá gizado para preencher o enorme vazio… Aguardemos, pois.

Luís Bastos