Sentimentos como os de perda de identidade, individual ou colectiva, de ausência de sentido para a existência, de descrença e de frustração pela impossibilidade, enfim, de uma vida boa e de concórdia assombram, ciclicamente, os homens. Em épocas distintas e pelos motivos mais díspares, ou nem por isso, raras foram as gerações que não conheceram períodos de apogeu e de decadência. E raras vezes, muito embora apercebendo-se do caminho que as conduzia para o abismo, foram capazes de o evitar. Dada a repetição do fenómeno no tempo, estas tendências ou inclinações parecem indissociáveis do modo específico de ser humano, ainda que este seja, em boa parte, moldado a partir de realidades sociais construídas pelos próprios homens. Contradições que não deixam de causar alguma perplexidade…
Também, e se por um lado a civilização construiu um mundo global dele retirando extraordinárias vantagens, por outro, fomos incapazes de barrar o caminho a uma pandemia que, apesar de tudo, a ciência havia previsto de alguma forma. E, depois, feito o mal, vem o pior, e a morte de milhões de pessoas é, numa primeira fase, assacada à impreparação para enfrentar o desconhecido, para, numa segunda, passar a constituir mais um gigantesco passo do génio humano no domínio da todo-poderosa tecnociência.
E, assim, provavelmente, porque não toleramos a ideia de que o mal dos outros nos possa calhar, ou por temermos que nos faltem os bens essenciais à sobrevivência, o maior dos egoísmos conduziu ao maior dos altruísmos e, do nada, choveram milhares de milhões para uma investigação genética bem sucedida, que rapidamente, qual passe de mágica, fez aparecer as vacinas milagrosas.
Vai daí, e como sempre ocorre quando o sentimento de insegurança e consequente consciência da insignificância da espécie se apodera de nós, salvar-se-ão os mesmos, e morrerão os de sempre, a massa pobre, os infortunados deste mundo, a mão de obra escrava do século XXI (responsável pela manufaturação de produtos de luxo, colocados em exibição nas boutiques da Europa das “bazucas” ), essa maioria informe e sem voz, em nome da qual a ONU se esforça, diariamente, para que não seja ostracizada, enquanto assobiamos para o ar, muito mais preocupados com o dia da nossa inoculação, que custa a chegar, ou nos vamos fixando na TV embasbacados com mais este outro prodígio do génio humano – a grande final da primeira etapa da epopeia marciana!
“Fratelli Tutti”, escrevia Francisco de Assis, mas talvez uns mais do que outros. Esta aldeia global, ao mesmo tempo que a todos fez vizinhos, isolou-nos em vez de nos aproximar, convertendo o individualismo, hiperbolizado pelo neoliberalismo, entre as virtudes do século. Colocou a desenfreada exploração capitalista, lá onde a solidariedade e o reconhecimento dos direitos humanos, a “amizade e fraternidade” (como diz Francisco, o Papa) deviam marcar presença. Mais grave ainda, como escreve o Papa na sua última carta encíclica, Fratelli Tutti, “a inesperada pandemia da Covid-19 deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.”
E é assim que os grandes antagonismos, a luta dos contrários, como diria Heraclito há algum tempo, muitas vezes violentos, quando não mesmo sangrentos, assolam a Humanidade com regularidade, encontrando a mola impulsionadora nas ideias e na acção humanas, sendo que, o fim em vista é sempre idêntico: o bem e a verdade que, em princípio, andarão ali para os lados da filosofia, da ciência, da política, ou da religião. É daqui, do seio destas esferas misteriosas e meio ocultas do saber, que brotam as revoluções e as crises, e os seus contrários, a paz, a prosperidade e o progresso que invariavelmente lhes sucedem, e assim por diante, em jeito de eterno retorno.
Mas por que é assim e não de outra maneira? Está determinado, por exemplo, que a paz apenas seja um intervalo (de descanso) entre guerras? Ou, pelo contrário, o projecto de uma paz perpétua, à maneira de Kant, pode ainda ser considerado como uma hipótese interessante ou, pelo menos, simpática, e pela qual pode ainda a vida valer a pena? Lá teremos de voltar a mergulhar nos tais saberes e procurar…
Os crentes, felizardos, procuraram e acharam, e dizem que tudo isto são problemas da razão que habita o mundo dos homens e que, portanto, sendo imperfeita, é insaciável. Por isso, o descontentamento e a insatisfação, a ânsia por conhecer, não nos darão tréguas, e a angústia e a frustração permanecerão connosco até ao fim dos tempos, o que, por sua vez, não se sabe o que é. Sabe-se, sim, que neste cruzeiro pelo Cosmos estamos todos, irremediavelmente, na mesma nave, pela fé e pela razão ou, provavelmente, por ambas convocados.
Luís Bastos
P.S. O Azorean Torpor apresenta, hoje, um novo logótipo. Trata-se de uma escultura sublime (o gosto é subjetivo) da artista Sophie Favre e que, por si só, dispensando descrição ou legenda, é capaz de se abrir à criatividade e imaginação de todos os leitores do “AT”, estejam ou não em modo de confinamento! Para os meus colegas professores de filosofia, e não só, pode constituir um bom começo de aula, sobretudo nestes tempos marcados por um enorme défice de entendimento…
Entretanto, se tiver algum problema técnico em visualizar o novo logótipo, talvez um simples click no cimo da página, à esquerda, onde se lê, AZOREAN TORPOR, o possa resolver.
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