NO DIA MUNDIAL DO (MEU) RÁDIO

Este foi o meu rádio, ou melhor, o receptor de ondas rádio responsável por me ter colocado, adolescente, em contacto com o Mundo, aqui, a partir da Ilha. Mais tarde, quando fui “lá para fora”, ainda no Portugal pré-democrático, foi através dele que conheci o amigo que ajudava a abrir as consciências para outras realidades, informando de forma mais credível, ainda que amordaçada, e que emitia programas que despertavam sensibilidades e gostos para géneros musicais menos comuns, à época, como, por exemplo, o Jazz – refiro-me, obviamente, ao Rádio Clube Português. Enfim, o pequeno objecto-prodígio da tecnologia daquele tempo, que os meus pais adquiriram numa viagem aos EUA e me ofereceram, rivalizava, pela qualidade do som, por todos apreciada (e cobiçada), com outros de médio e grande porte adquiridos, muitas vezes, para fazer mais vista no salão do que para fruição propriamente dita das potencialidades incorporadas…

À noite, sintonizando a “BBC World Service” em “SW” (Shortwave – quem não souber do que se trata, é só “clicar”), lá se ia conseguindo ouvir as “notícias”, livres de censura, incluindo (algumas) sobre Portugal e a guerra colonial; sobre a guerra no Vietname e as manifestações de protesto nos EUA (muitas); sobre o que disse, pela paz, Bertrand Russell; ou o último “grito” editorial de Sartre sobre o existencialismo e a liberdade. Todas as noites, a “BBC” dispensava-nos ainda uns minutos com curtas reproduções de algumas das músicas que compunham o “Top Ten” londrino.

Naqueles anos de ditadura, em dias e horas de que não me recordo, mas já noite dentro, chegava-nos a inconfundível voz de Manuel Alegre, desde Argel, onde se encontrava exilado, com o programa da oposição e de resistência ao regime, emitido pela rádio “A Voz da Liberdade”. Esta estação emissora, para além da fervorosa propaganda anti-fascista, informava-nos das acções repressivas do Estado através da polícia política (PIDE/DGS), das prisões de estudantes e seus nomes, das manifestações anti-regime, das acções de sabotagem de grupos organizados como a L.U.A.R., dirigida por Palma Inácio, ou a A.R.A., braço armado do P.C.P.

Seguiam-se, invariavelmente, e quantas vezes com indescritível custo, mais uns exercícios de matemática do “Palma Fernandes”, uma passagem pelas páginas intragáveis do compêndio de “História do Mattoso” ou, mais tarde, pelo calhamaço do “Bonifácio”, onde, na capa, se podia ler “Filosofia” – que grande descaramento! Mas o meu rádio, ainda assim, não desistia de mim.

Já “lá fora”, estudante de filosofia (por acaso), adormecia com o meu rádio relaxante, a emitir sem cessar. Desligá-lo seria tratá-lo mal, silenciar-lhe a voz. Até que um dia, de madrugada, sou subitamente acordado pela voz do Luís Filipe Costa, lendo um comunicado que o meu subconsciente deve ter assumido como estranho e algo imprevisível. Mas era mesmo, e o meu rádio viveu o tempo suficiente para anunciar a notícia do dia – chegou a Liberdade!

Algum tempo depois, não resistiu à onda do progresso, tendo sucumbido às mãos da fortíssima frequência modulada (FM).

Viva a rádio!

Luís Bastos

Autor: Luís Bastos

Licenciado em Filosofia; Mestre em filosofia contemporânea. Interesses: filosofia e ciência politica; ética; filosofia da ciência; artes; história; património cultural. Blogue: azoreantorpor.wordpress.com

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