Primeiro, comecei por escrever sobre essas estranhas coisas, muito estranhas coisas, que à pala das discussões sobre orçamentos e bazucas estão por aqui e por ali, tanto por cá como por lá, a suceder. Seja por falta de entendimento entre os partidos, seja pela falta daquele dentro dos próprios, certo é que em tempos pós pandémicos, quando a bonança política e social mas, sobretudo, o bom senso eram, mais do que nunca, esperados e desejados como autênticas “agendas mobilizadoras”, a confusão e a instabilidade alastraram. E tal como o clima por estas bandas, enquanto tudo permanecer muito encrespado e nebulado, manda a prudência que não haja precipitação. Aguardemos, pois, por algumas abertas, de modo a clarear o imenso caudal de ideias em concurso. De momento, apenas se pode dar como certo o iminente avanço da catapulta…
Porém, enquanto tentava enveredar a escrita por aqueles atalhos, ouvia eu “La Follia”, uma composição de António Vivaldi que, traduzida para a língua de Camões, significa “loucura”. Nem mais! Curiosamente, alguns musicólogos de nomeada afirmam que a “folia”, enquanto “esquema harmónico-melódico”, terá tido a sua origem em Portugal, no século XV, e que o nosso dramaturgo Gil Vicente, na peça Auto da Sibila Cassandra (1503), lhe deu expressão numa dança de pastores. Finalmente, como poucos dias antes havia concluído algumas leituras, sempre para mim fascinantes, sobre o que ainda se pode descobrir nos génios, algo me impeliu na direcção destas outras artes, bem mais belas e menos pesadas.
Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741) era padre e era ruivo e, assim, por Prete Rosso foi popularmente alcunhado pelos seus muitos admiradores na inebriante República de Veneza do século XVIII. Foi dispensado de dizer missa, ao que dizem alguns, por doença crónica (asma?) e, segundo outros, para se dedicar, como hoje diríamos, à música a tempo inteiro. Mas há, depois, aqueles que acreditam (as línguas viperinas não são de hoje nem de ontem) que, para além da música, a paixão pela carne, que é fraca (cibus est infirma – Mateus, 26.41), terá estado na origem de uma fé vacilante…
Violinista exímio (“toca como um diabo”), foi um compositor prolífico, sendo a sua obra composta por quarenta e três óperas, cerca de cinquenta composições sacras, cinquenta serenatas e cantatas profanas, noventa e quatro sonatas e mais de quinhentos concertos e sinfonias!
Como empresário, que também foi, no Teatro Sant’Angelo, na sua Veneza, revela a faceta de hábil e temível homem de negócios e, para alguns historiadores da música, terá sido mesmo dos primeiros a contribuir para o aparecimento de profissionais neste meio artístico.
A sua fama espalha-se de tal modo pelos amantes da música de excelência, cultivada nos areópagos europeus da especialidade, que a Veneza afluem, com regularidade, muitos e ilustres visitantes, nobres e burgueses, oriundos das mais poderosas cortes, na expectativa de poderem disfrutar dos espectáculos do autor de As quatro estações, cuja beleza avassaladora era uma opinião generalizada.
Mas o que mais contribuía para o deleite estético, tanto dos locais como dos forasteiros, era a inigualável qualidade de execução instrumental e vocal da magnífica orquestra dirigida por Vivaldi, associada ao facto de ela integrar, apenas, raparigas do orfanato Ospedale della Pietà, onde o Prete Rosso foi professor de violino e maestro, sendo esta, aliás, a sua principal ocupação. Estas meninas cantavam por detrás das grades das galerias superiores da igreja, certamente para se protegerem de manifestações de êxtase excessivo ou, mesmo, de imprevisto arrebatamento por parte de algum espectador menos racional… Na verdade, todo este cenário adensava o cunho teatral que Antonio Vivaldi tanto gostava de imprimir aos seus espectáculos, já que o soar angelical do canto daquelas mulheres, avistadas apenas em silhueta, propiciava ao público a dose necessária de atracção pelo desvendamento do mistério…
A partir de certa altura, Veneza passa a relacionar-se mal com o seu grande maestro e compositor internacionalmente reconhecido. Criam-lhe má reputação e atacam-no moralmente – o padre Vivaldi não diz missa, vive acompanhado por mulheres e é empresário…
O génio, como tantos outros, acabou só e na miséria, encontrando a morte em Viena, no mês de Julho do ano de 1741. Por esta altura, já Veneza o havia esquecido e o resto da Europa também, assim permanecendo durante um longo período de tempo. Só no século XIX renasce o interesse pela obra de Vivaldi quando investigadores alemães, ao debruçarem-se sobre J. S. Bach (1685-1750), descobrem que este havia transcrito várias obras daquele para teclas… Todavia, a redescoberta só acontece após 1945, com a publicação das obras instrumentais e de grande parte das religiosas! É, pois, muito recente o conhecimento que temos da enorme importância do “Padre Ruivo” para a cultura musical da Europa de setecentos. Mas, hoje, ouvimo-lo por todo o lado, mesmo nos mais inesperados espaços. Ainda bem.
Luís Bastos
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