O meu testemunho em “A Liberdade por Princípio”, livro em homenagem a Mário Mesquita

Poucos anos são muitos mais quando andamos ali pelo limbo das adolescências, vividas num tempo ainda não completamente subjugado pelo cronómetro. Por isso, naquele período, dada a diferença de mundos, não aconteceu que nos cruzássemos, tal como eu teria gostado.

Mas observava os mais velhos, “os grandes”, quando no Verão vinham a banhos, em São Pedro ou no Pópulo, desenvolvendo, também, intensa actividade peripatética. A minha curiosidade aumentava na exacta medida em que daqueles jovens me era dado ouvir nomeá-los quase em surdina, não fossem vozes descuidadas despertar espécies ameaçadoras, vampirescas, que deviam permanecer bem afastadas e ignoradas…

Só mais tarde me viria a aperceber de que aquelas elucubrações todas (que as minhas percepções não logravam, ainda, alcançar), a que se dedicava aquele grupo de intelectuais, eram coisas bem sérias. Perpassavam a literatura, nos seus mais variados géneros, dos clássicos aos contemporâneos, como Antero; de Roger Martin du Gard, com o seu incontornável “Jean Barois” e a dissecação do drama humano, a Jean-Paul Sartre e às correntes existencialistas em geral. Se “A Peste” ou “O Mito de Sísifo”, de Camus, se terão revelado instrumentos indispensáveis a uma pedagógica postura céptica perante o mundo dos homens, Bertrand Russell, em “Por que não sou Cristão”, terá suscitado em Mário Mesquita, como, aliás, em muitos jovens intelectuais seus contemporâneos, a dispensabilidade do divino como fundamento da ordem natural das coisas.

O exercício da dialéctica, de inspiração hegeliana, alimentava a análise do fenómeno sócio-político e, claro, Marx e o materialismo histórico eram temas recorrentes de longuíssimas tertúlias, onde tendências e conspirações várias engrossavam este caldo efervescente.

Tempos ainda de sonhos, que vão de “Che” ao Woodstock de Bob Dylan e Joan Baez, do “Maio de 68” ao “socialismo romântico” de Salvador Allende. Mas, também, da queda definitiva de alguns outros mitos, ainda pendentes, e que os tanques soviéticos nas ruas de Praga acabariam por destruir de forma definitiva.

Neste rico e diversificado cenário político e cultural, o cinema europeu conhecia o seu auge, com o francês da nouvelle vague e o italiano, a darem cartas por conta de Jean-Luc Godard, Truffaut, Fellini ou Antonioni. Novas formas de abordagem cinematográfica, interpelando valores e instituições, abririam, assim, importantes espaços de diálogo social onde Mário Mesquita não deixou de marcar presença.

Mas aquele seu andar despreocupado com simetrias, descompassado e sem pressas, em movimento ligeiramente pendular e cansado, era como se de uma consequência biológica se tratasse, retirada do peso das preocupações de natureza político-filosófica que dele, precocemente, se apoderaram e que, ainda hoje, alimentam o seu espírito de homem de profunda reflexão, mas, também, de acção.

Mário Mesquita é um cidadão livre e independente dos poderes, preocupado, ontem, como hoje, com o destino dos homens e mulheres do seu país e da sua Região Autónoma dos Açores.

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Casa dos Açores em Lisboa, 1978. Mário Mesquita profere uma conferência sobre autonomia e separatismo nos Açores. Na primeira fila, Mota Amaral e Jaime Gama.
(Fotografia: Arquivo Pessoal de Mário Mesquita, in “A Liberdade Por Princípio. Estudos e Testemunhos em Homenagem a Mário Mesquita”, Tinta da China, 2021)

Acérrimo defensor dos direitos e liberdades fundamentais, onde a justiça social e a liberdade de expressão ocupam o vértice da sua hierarquia de valores, mantém-se sempre firme na sua defesa, mesmo quando, de alguma sorte, isso lhe possa trazer incómodos e dissabores.

Homem de cultura, jornalista proeminente e director do jornal “Diário de Notícias” durante cerca de uma década, Mário Mesquita constitui, ainda hoje, uma referência maior do jornalismo português, tendo-lhe conferido modernidade e indiscutível prestígio.  

Em Portugal, onde os órgãos de comunicação social (e ninguém melhor do que ele o sabe…) se encontram agrilhoados a poderosos interesses instalados, a liberdade de expressão e a qualidade da informação já conheceram melhores dias. E jornalistas como o Mário, enquanto verdadeiros opinion makers, que o poder lia e auscultava com atenção, muitas vezes levando-o mesmo a mudar de rumo, desapareceram.

Os seus artigos como diretor do “DN” e os do “Diário de Lisboa”, de que também foi director, bem como as colaborações regulares que manteve, como colunista, no “Público” e no “Jornal de Notícias”, entre outras publicações, estão eivados da qualidade que configura e anuncia o ensaísta de excelência que também é. Tal se consubstancia na pertinência e na selecção cuidada dos temas que aborda, na mestria com que sabe prender a atenção do leitor às suas ideias, que aprofunda com conhecimento de causa, e num misto, por vezes desconcertante, de ironia e de humor revestido de filigrana.

Como Professor, é lembrado pelos antigos alunos, hoje jornalistas, com a admiração e o respeito que aos decanos são devidos. É que, para além do Professor, do amigo e do futuro colega, aquele que, ali, ao vivo, ensinava com a humildade própria do possuidor de sagesse, era, também, alguém que carregava aos ombros a responsabilidade da acção contra uma ditadura que ajudou a derrubar, bem como da construção de um país livre e democrático.

O meu amigo Mário tem a alma impregnada da lava das ilhas que ama e que o viram nascer e crescer, e disso tem dado, ao longo da vida, insofismáveis testemunhos.

Como administrador da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, cedo soube retirar as devidas consequências do peso político e histórico da palavra Açores, implicitamente contida na designação atribuída àquela fundação. Imprimindo-lhe uma abertura e uma dinâmica muito próprias, encetando intensa cooperação com a Região Autónoma em áreas de especial relevo para o seu desenvolvimento e conhecimento, ali deixou, pelo seu inexcedível e discreto trabalho, a marca, que dificilmente será apagada, da justa associação da Fundação aos Açores e às suas gentes.

Termino estas linhas apelando a Mário Mesquita para que regresse, o mais rapidamente possível, à sua sábia opinião escrita, porque ela faz falta aos Açores e a Portugal.

Ponta Delgada, 26 de Junho de 2020

Luís Bastos

NOTA: A sessão de lançamento do livro teve lugar hoje, em Ponta Delgada, no Teatro Micaelense.

Autor: Luís Bastos

Licenciado em Filosofia; Mestre em filosofia contemporânea. Interesses: filosofia e ciência politica; ética; filosofia da ciência; artes; história; património cultural. Blogue: azoreantorpor.wordpress.com

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