Torpores e tremores

  1. NOVEMBRO 19CONFERÊNCIA “CHEGA”

Um momento de mau gosto, para o qual muito contribuíram algumas perguntas patéticas, e onde a demagogia e a iliteracia políticas estiveram ao seu melhor nível, roçando mesmo a boçalidade. Um reflexo, ainda, do centralismo fascistóide, traduzido na manietação dos mais fracos, tão bem aplicada aos Açores até à revolução autonómica de 1974/76, e já igualmente explicada por La Boétie, no seu Discurso sobre a Servidão Voluntária, em 1563. O espectáculo teve projecção nacional. Desta vez, Rabo de Peixe foi preterido…

2. DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

Em 2005, a Unesco determinou que na terceira quinta-feira de cada mês de Novembro seria assinalado o Dia Mundial da Filosofia. E assim calhou, este ano, ser no passado dia 18 de Novembro. No site daquela organização pode ler-se que “o ensino da filosofia deve ser preservado ou alargado onde já existe e criado onde não existe, posto que ao formar espíritos livres e reflexivos, capazes de resistir às diversas formas de propaganda, o ensino da filosofia prepara cada um a assumir as suas responsabilidades face às grandes interrogações contemporâneas“.

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A propósito, em jeito de comemoração, e entre outros possíveis, vai aqui um muito sintético apontamento sobre Baruch Espinosa (1632-1677), um judeu sefardita de origem portuguesa, nascido em Amesterdão, cidade onde a sua família encontrou refúgio, na sequência das perseguições aos judeus perpetradas pela Inquisição. Filósofo, de entre os maiores da modernidade, controverso, por vezes até estranho, mas fascinante, é portador de uma perspectiva totalmente inovadora e ousada em áreas como a teologia, a política e, sobretudo, a ética. Na verdade, rompe com alguns dos padrões em que assenta o pensamento de origem judaico-cristã, no que concerne às relações criador/criação, alma/corpo, espírito/matéria. No sistema filosófico que constrói, este dualismo é anulado, para abrir caminho a uma perspectiva revolucionária, na qual Deus e a Natureza constituem uma única e mesma realidade cósmica – o monismo. É daqui que surge a célebre frase, para sempre associada a Espinosa, Deus sive natura (Deus, ou seja, a natureza). Quer isto dizer que não há criador nem mundo criado. Tudo está em Deus e Deus está em tudo. Este Deus/natureza de Espinosa, tão do agrado de Goethe ou de Einstein, é, assim, matéria e espírito inseparáveis, tal como o corpo e a alma humana o são.

Espinosa - o que é filosofia? • Razão Inadequada
Baruch Espinosa

A discussão sobre alguns dos conceitos espinosistas deram e continuam a dar pano para mangas. Escusado será dizer, ainda, que em tempos de intolerâncias e fanatismos, como eram aqueles em que Espinosa viveu (e que hoje devemos revisitar para deles retirarmos ilações e assim nos precavermos…), a perseguição ao Homem e às suas ideias não se fizeram esperar por parte das hierarquias das várias religiões. E Baruch, aos vinte e três anos de idade, acaba por ser banido da própria comunidade judaica, pelos anciãos da sinagoga portuguesa de Amesterdão que anunciam um herem (excomunhão) contendo um texto de incrível violência, vilipendiando o filósofo, distorcendo o seu pensamento e deturpando os seus actos com as mais torpes adjectivações.

A repressão foi implacável para com a razão laica que nascia no início da modernidade, desafiando as tradições religiosas então dominantes.

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“Herem” (o equivalente a excomunhão na religião católica) dirigido a Espinosa, o filósofo judeu de ascendência portuguesa:

Excomungamos, apartamos, amaldiçoamos e
praguejamos a Baruch de Espinosa, como o herem que excomungou Josué a Jericó, com a maldição que maldisse Elias aos moços, e com todas as maldições que estão escritas na LeiMaldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar; (…)ninguém lhe pode falar oralmente nem por escrito, nem lhe fazer nenhum favor, nem estar com ele debaixo do mesmo teto, nem junto com ele a menos de quatro côvados, nem ler papel algum feito ou escrito por ele.”

3. CONFERÊNCIA DOS PRESIDENTES DAS RUPs

Num sector do Palácio da Conceição, em Ponta Delgada, tendo como cenário o belo interior da Igreja Nossa Senhora do Carmo, fruto das obras de restauro levadas a cabo pela extinta “Casa da Autonomia”, decorreu a XXVI Conferência dos Presidentes das Regiões Ultraperiféricas que integram alguns estados (laicos como todos os outros), da UE. Destacam-se, nas suas conclusões, chamadas de atenção da Comissão Europeia para o agravamento das desigualdades sociais, para os efeitos económicos provocados pela pandemia, para a vulnerabilidade das regiões ultraperiféricas agravada pelas catástrofes naturais resultantes das alterações climáticas, bem como, ainda, para alguns, outros, problemas ambientais. Muito bem.

Através de programas próprios, as RUPs, criadas em 1995, veriam substancialmente reforçados os apoios financeiros destinados a sectores cruciais para o desenvolvimento económico e social das ilhas e, “o nosso propósito não era apenas garantir recursos financeiros acrescidos, mas também obter modulações nas políticas comunitárias com maior incidência nas ilhas, nomeadamente agricultura e pescas, transportes energia e ambiente. É justo reconhecer que a resposta europeia tem sido apreciável e de comprovada eficácia”. (Mota Amaral, 2014)

Na RTP-A, a Secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, explicava aos açorianos, no âmbito de um debate, presumo eu, sobre o futuro da Europa, em Ponta Delgada, o que eram as RUPs e da sua importância para a Europa, bem como das vantagens e dos apoios financeiros de que podemos beneficiar através dos seus programas. Vinte e seis anos depois, fiquei esclarecido… É que, por cá, não havia quem, e o sotaque faz toda a diferença!

Fotografia na Ilha de Guadalupe, onde os Presidentes das sete Regiões Ultraperiféricas (Guiana, Martinica, Madeira, Canárias, Reunião, Guadalupe e Açores) assinaram o documento que cria a Conferência dos Presidentes das RUPs, em Março de 1995. Há que reconhecer o papel de indiscutível liderança e, mesmo, determinante, exercido por Mota Amaral em todo o processo conducente à constituição das RUPs.

4. MELITO

No passado dia 17, a Fundação Sousa d’Oliveira homenageou, a título póstumo, o meu amigo Manuel Alfredo Melo Bento.

O Melito era um não alinhado, estatuto que defendia com a convicção própria de um militante de causas! Angustiava-o não vislumbrar nos homens a vontade ou a capacidade necessárias à construção de um mundo melhor. Era um céptico lúcido.

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Revoltava-se com a injustiça, com a situação do trabalhador explorado, com a hipocrisia social. O Melito colocava-se sempre do lado dos socialmente mais frágeis.

Foi um espírito livre, indomável, avesso a ortodoxias e a qualquer tipo de profecia. Assim escreveu e assim pintou. Jornalista e blogger, foi um professor responsável, querido por alunos e colegas, e comprometido com a causa da educação.

Luís Bastos

Um livro sinóptico

Decorria o mês de Fevereiro, sempre o mais frio do ameno inverno açoriano. Princípios do ano de 2020, sim, mas já o meu, que é o dos professores, ia a meio. Preparava-me então, para, terminando o ano lectivo, aguardar, no meu posto, pacificamente, a estreia, iminente, naquela outra etapa da vida onde o sabor da liberdade, dizem, é ainda mais vivo, após 42 anos exclusivamente dedicado ao serviço público.

Porém, inesperadamente, sou confrontado com o desafio da Editora “Letras Lavadas” para elaborar uma Fotobiografia de João Bosco Mota Amaral. Isso mesmo!

Percebi, de imediato, a dimensão do que me era pedido e, sobretudo, a responsabilidade que sobre mim recairia caso aceitasse o desiderato. E a decisão deu-se quase que por impulso instintivo. Afinal, Damásio não se engana quando releva as emoções como factor determinante das nossas decisões, embora também alerte para as suas consequências, por vezes nefastas, caso a emoção, no processo decisório, acabe por esmagar a razão…

Pus-me, assim, a gizar um projecto de fotobiografia capaz de abordar o pensamento e a acção do estadista que deixou marca indelével na História de Portugal do último meio século e que, nos Açores, habilmente, liderou uma nova geração fundadora da Autonomia política e administrativa, resgatando os Açores, desta vez sim, de uma opressão centralista de contornos colonialistas, lançando-os na senda de um progresso sem precedentes, desde o povoamento.

Tomei como principal fonte de investigação o imenso “Arquivo Pessoal João Bosco Mota Amaral” (que inclui uma livraria) doado à Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, e onde é possível descortinar, por entre valiosíssimo espólio, uma vida de incessante entrega à actividade política, em prol de Portugal.

Acabou o livro por albergar uma selecção (sempre subjectiva, claro está) de episódios que considerei significativos de um percurso cívico e político longo e muito rico. Mais precisamente, aqueles que julguei contribuírem para dar a conhecer ao grande público, e nas suas linhas gerais, o pensamento de João Bosco, o leque de valores ético-políticos, religiosos, estéticos que defendeu e defende, e o modo como estes se expressam na acção do político. E é pela impossibilidade de um livro abarcar todas as passagens fundamentais de uma vida recheada de mundo que este constitui, necessariamente, uma sinopse.

Nesta perspectiva, este trabalho, que tem um cunho pedagógico evidente, poderá, ainda, constituir uma chave de acesso a investigações aprofundadas e à actividade interpretativa por parte dos cientistas sociais acerca de um dos períodos mais interessantes da História de Portugal e, indubitavelmente, o mais empolgante da História dos Açores. Pelo menos, foi este um dos meus propósitos…

Agora que o livro foi publicamente apresentado, estando exposto à crítica e aos demais juízos de valor, achei que era devido este apontamento, por puro respeito a todos os que seguem o Azorean Torpor, ou que a ele acedem com frequência, e que é, também, um espaço público de livre opinião e comentário crítico. E assim continuará.

Luís Bastos