Por José Luís Brandão da Luz
Começa hoje a ser possível conviver com a ideia de que o mundo da racionalidade se não circunscreve às aparências e que jamais exclui o invisível do seu horizonte. Antes pelo contrário, ele acolhe no seu espaço a ciência e a religião, mas também a arte nas suas diversas manifestações, para melhor compreender a realidade e exprimir o indizível.
O editorial do jornal parisiense Le Figaro, do passado dia 29 de março, Sexta Feira Santa, comentava a notícia de que, em toda a França, 12 000 jovens e adultos iam receber o batismo, na Vigília Pascal de Sábado de Aleluia. Certamente que o grupo não é assim tão significativo, se o compararmos com o número dos que tem abandonado a Igreja, deixando de contrair matrimónio e de batizar as suas crianças. O fenómeno, porém, não deixa de surpreender, comenta o editorialista, quando por todo o lado se diz que a Igreja está esgotada, a sua mensagem ultrapassada e os seus membros são pouco confiáveis. As adesões representam uma subida de 28%, em relação ao ano anterior, que também conheceu um grande crescimento, o que não deixa de constituir uma boa notícia para uma instituição, que nestes últimos anos tem sido tão duramente atingida pela revelação de estrondosos escândalos e uma ladainha de cifras que contam em baixa os que lhe permanecem fiéis, frequentando as igrejas e os sacramentos, que dantes configuravam os ritmos da vida social.
Para o editorialista do periódico francês, os “aventureiros” que agora entram na Igreja, contra a corrente dos que dela desertam, são os filhos e netos de famílias sem religião, fruto da secularização do último meio século, e de jovens oriundos de famílias muçulmanas que evocam motivações existenciais a que a religião dos pais não dá satisfação. Nos depoimentos que o jornal recolheu de alguns desses jovens, todos falavam duma “sede” que as ofertas do mundo moderno não saciavam. A prosperidade e a tecnologia, que fortalecem o corpo e facilitam a vida do dia a dia, deixam sem resposta os apelos do espírito, que se perdem num vazio, sem altura, sem profundidade e sem ressonância. Todos, porém, assegura o editorialista, dão testemunho da descoberta do Deus feito homem que preencheu plenamente as suas vidas.
No mesmo jornal, um artigo de Laurence de Charette, «Pourquoi de jeunes adultes se font-ils encore baptiser?», lembra o refúgio que muitos procuram em novas práticas neo-espiritualistas, hoje muito difundidas, mas que só conseguem acalmar a mente, isolando-a do mundo. Lembra ainda a revalorização da fé que durante décadas foi desautorizada pelos discursos da razão que se tinham colocado inteiramente ao serviço das ciências positivas. Começa hoje a ser possível conviver com a ideia de que o mundo da racionalidade se não circunscreve às aparências e que jamais exclui o invisível do seu horizonte. Antes pelo contrário, ele acolhe no seu espaço a ciência e a religião, mas também a arte nas suas diversas manifestações, para melhor compreender a realidade e exprimir o indizível. A crença religiosa não se sustenta da verificação ou da prova que traz a certeza à ciência, mas vive da experiência de um encontro que, não sendo totalmente compreensível, não é propriamente incompreensível.
O tema extravasa o aconchego do “espaço privado” e começa a despertar a atenção da sociologia política, como é exemplo a investigação do sociólogo alemão Hartmut Rosa que, na sua última obra – Porque tem a Democracia Necessidade da Religião? –, aborda a sociedade europeia pelo lado do crescente sentimento de descrença nas promessas políticas de um futuro melhor. Cansadas da imparável e agressiva “aceleração” que a sociedade lhes impõe, desiludidas porque a sua voz não encontra ressonância na participação política, as pessoas viram-se para a escuta e a proximidade dum universo que lhes não seja indiferente e lhes responda. Ganham assim sentido as ações que saciam a “sede”, estimulando o encontro consigo próprio e promovendo o bem comum, a solidariedade ou a caridade, domínios que enraízam nas camadas mais profundas do cristianismo.
Perante estes dados que traçam uma imagem da Igreja em alta, será irresistível olhar para o que todo este movimento traz consigo para o seu interior. Que novas exigências se vão fazer ouvir? Que expectativas entusiasmam os novos “fiéis”? Nos dias de hoje ninguém parece disposto a renunciar ao exercício da liberdade de dispor dos seus projetos, de escolher e tornar a escolher, sem constrangimentos, tudo e o seu contrário, num universo liquefeito que baniu do seu horizonte lições de moral impostas do exterior, mas exige viver sem autoridades que ditem as suas leis. Sobre esta forma de ver o mundo, feita de direitos a que a liberdade individual vai concedendo cidadania, paira a ameaça de um jugo imposto à liberdade pessoal que, à partida, poderá subverter o furor desta aproximação. A surpresa transforma-se para a Igreja num desafio, para não dececionar as expectativas que o refrescamento da nova fé irá certamente propagar no interior da multimilenária instituição.
José Luís Brandão da Luz
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