No próximo dia 25 de Abril comemora-se em Portugal 50 anos sobre o golpe de Estado, seguido da Revolução, que colocou um ponto final num regime que há décadas mantinha o país sem as liberdades e os direitos fundamentais próprios de uma democracia – de expressão e de pensamento, de reunião e de associação, eleições livres. Com uma guerra colonial que se arrastava já por treze anos a ceifar vidas jovens, Portugal encontrava-se, então, isolado internacionalmente e, na feliz expressão de Mário Soares, amordaçado. Os resistentes à ditadura organizavam-se como podiam, em segredo, na clandestinidade. Coadjuvado por uma polícia política de má memória – a PIDE -, o Estado totalitário perseguia e reprimia, sem piedade, todos quantos, de forma mais activa e corajosa, pugnavam pela liberdade, pela democracia, por um Portugal com esperança num futuro melhor. Foram deportações, prisões, torturas, morte.
Partir em Pecado Mortal é o título do novo livro da escritora Madalena San-Bento que, com muita oportunidade, será lançado no mercado numa edição da Predicado Inclinado, já no próximo dia 23 de Abril, antevéspera do Dia da Liberdade, tendo por palco o Centro de Artes Contemporâneas, na cidade da Ribeira Grande. Lá estaremos, com muito gosto, correspondendo ao amável convite da autora, para apresentar esta obra de incontornável valor literário.
De escrita lúcida e leitura penetrante, pelo pendor dramático de que se reveste, este romance histórico, género, aliás, da preferência da escritora, está cronologicamente situado no Estado Novo. Nele, Madalena San-Bento ocupa-se, com indiscutível e surpreendente mestria, de temáticas carregadas de significado político e social, como a guerra colonial e a violência extrema exercida pela PIDE sobre os presos políticos.
Paralelamente, a caracterização da sociedade portuguesa de então, as suas feridas abertas, desfolha-se através de uma observação atenta dos perfis psicológicos das diversas personagens com origens de classe e estatutos sociais diversos e até antagónicos, porém unidos pelos laços de sã amizade que os idílicos anos 60 do século XX tão bem souberam conceber.
Madalena San-Bento confere à sua narrativa uma cadência que desperta no leitor elevado grau de sedução. De facto, a sequência das histórias que se desenrolam dentro do seu romance, denotando articulação bem urdida, patenteia uma rara capacidade analítica que, manifestamente, respalda profundo conhecimento e fina sensibilidade estribados em aturada investigação histórica.
Nesta obra, enquanto os limites da resistência física e mental dos jovens combatentes em África são colocados à prova, numa guerra cujo sentido não compreendem, no plano axiológico evidenciam-se atitudes e comportamentos como a coragem e a solidariedade, em alternância com as fraquezas e misérias próprias da condição humana, exibidas quando em situação de subjugo face aos ditames naturais da sobrevivência.
Paralelamente, na metrópole, estão os jovens que buscam avidamente por explicações, por um sentido para as suas vidas, que interpelam o regime e as classes possidentes que o sustentam, que temem a mobilização para a guerra injusta. E há os que se conformam e desistem, os que escolhem a deserção como forma de protesto e os que permanecem procurando justificação para a dilemática moral que os invade e os confunde. Muitos são atraídos para a frequência de reuniões clandestinas, onde os problemas se debatem e as palavras libertam, politizam-se, e ainda alguns se radicalizam enveredando por uma militância activa que, mais cedo ou mais tarde, acabará por os levar à prisão e à tortura.
A autora de Partir em Pecado Mortal, ao descrever os cenários de guerra, sejam emboscadas, bombardeamentos aéreos, resgate de feridos e de mortos ou, até, aspectos da vida quotidiana nos aquartelamentos militares, faz o movimento contrário ao da simples narração, transportando do interior das cenas para o leitor a realidade cruel que ela própria aparenta viver e experienciar intensamente, qual repórter de guerra a aguardar por uma pequena trégua no tempo infernal para proceder à recolha, tratamento e divulgação da devida informação acerca da face bestial do humano.
Madalena San-Bento junta-se, assim, não só a um escassíssimo número de mulheres que escreveram no nosso país sobre o teatro de guerra propriamente dito, como nos dá conta, com invulgar realismo e coragem, dos seus horrores.
Rara é, igualmente, a escrita feminina sobre as atrocidades cometidas pela PIDE sobre mulheres prisioneiras políticas. Mediante episódios ficcionados, embora sempre sábia e cientificamente ancorados na história, acusando vasta investigação e recolha de testemunhos, a autora causa-nos sobressalto neste romance ao expôr as torturas infligidas por agentes femininos da polícia política sobre as prisioneiras.
E nestas histórias relatadas nem faltará quem, na verdade, tenha existido, como é o caso de “Leninha”, um diminutivo por demais adocicado, convenhamos, para esta agente da PIDE, de todas a mais temida, que conseguiu galgar ao topo da hierarquia daquela polícia, mercê da sua dedicação profissional ao aperfeiçoamento dos métodos de tortura aplicados às prisioneiras políticas.
Este bem engendrado romance histórico de Madalena San-Bento está também repleto de actualidade: porque a uns dá a conhecer a história e a outros convoca a memória dos tempos, é pedagógico; porque a densidade dramática envolvendo nefastos acontecimentos ocorridos durante o regime ditatorial nos aguça o amor à liberdade e nos alerta para eventuais abismos iminentes, é preventivo; pelo permanente e intemporal jogo de emoções, que ora nos acalenta, ora com nojo repudiamos, mas sempre tão vivo e presente na vida de cada um de nós, é-nos familiar.
Parabéns Madalena!
Luís Bastos
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