Das pompas e das circunstâncias históricas

Conforme noticiado com pompa e circunstância, foi inaugurado, no Palácio Nacional da Ajuda, no passado dia 1 de Junho, o Museu do Tesouro Real. Mil joias, peças raras em ouro e diamante, moedas e medalhas reais, salvas e pratas quinhentistas, alfaias litúrgicas e paramentos religiosos, eis o que guarda este novo museu que custou 31 milhões de euros. Ao contrário do que muitos, eventualmente, poderiam pensar, trata-se de uma colecção de valor incalculável mas que, apesar disso, não integrava nenhuma das pertencentes ao Comendador (ex?) Joe Berardo…

Núcleo do museu dedicado às insígnias régias onde se encontra o quadro de D. Carlos pintado por José Malhoa
© Paulo Spranger/Global Imagens

Na verdade, tratou-se de uma segunda inauguração. Circunstâncias que não domino totalmente, mas algo estranhas, ditaram que, faz agora um ano, o Museu fosse inaugurado despido das ditas peças, ou de qualquer outra, muito embora já lá estivesse colocada e a fazer figurão “uma das maiores caixas-fortes do mundo” (Portugal sempre teve destas coisas). As dimensões da coisa – 40 metros de comprimento, 10 metros de largura e 10 metros de altura -, além de outras características, algumas até extraídas da ciência da balística, garantem, finalmente, a segurança do Museu que alberga as joias da coroa e que foi planeado, mas nunca concretizado (Portugal sempre teve destas coisas), há 226 anos para aquela nova ala poente do Palácio!

Representantes do Governo e Presidente da República há um ano, na inauguração da nova ala do Palácio da Ajuda. Foto: Maria João Costa/RR

É claro que os monárquicos portugueses têm motivos de sobra para rejubilarem de alegria por estes dias, incluindo, como não podia deixar de ser, os inúmeros militantes do robusto partido açoriano integrante do poder regional, e agora neste entronizado, segundo informação/deliberação fidedigna dos últimos dias.

Ora, se a toda esta azáfama juntarmos as comemorações do jubileu de platina da Rainha Elizabeth II, este mês de Junho será emocionalmente esgotante. Não só para os membros mais activos da grande causa monárquica lusitana, mas, ainda, e muito especialmente, para os açorianos da mesma nobre causa. Tendo estes responsabilidades no Governo e no Parlamento dos Açores, de tendência maioritariamente republicana, segue-se que, e por tal feito, segundo o direito consuetudinário das terras de Sua Majestade, manda o protocolo do Palácio de Buckingham o envio de dois vouchers/convites para presença com assento reclinado e manta num dos animados picnics a decorrer nas matas traseiras do Castelo de Windsor.

Museu do Tesouro Real, “Baixela Germain com animação vídeo”. Foto: António Cotrim/Lusa

Assim, é de esperar que o Governo dos Açores fique praticamente sem agendas, pelo menos durante estes dias de platina, e bem assim a Oposição, e as outras, quer internas, quer externas ao Governo. Previstas estão, ainda, quebras substanciais de receitas municipais provocadas pelo fecho, ainda que temporário, da Sinagoga Sahar Hassamaim (“Portas do Céu”) devido à ausência de guia credenciado e exegeta da Tora, para o habitual acolhimento, sensibilização e orientação dos inúmeros estudantes e turistas que diariamente visitam aquele Museu/Portas do Céu. À dura mas ganha batalha pelo silêncio da cidade sem carros, em modo de paz celestial, tão propício à reflexão e à expressão da acentuada espiritualidade dos seus munícipes, eis que sucede agora a preocupação pela ecological footprint – pegada ecológica – urbana!

Foi em meados do mês de Junho e principios de Julho, mas do ano de 1901, que se iniciou a histórica visita régia à Madeira e aos Açores, considerada “a primeira grande visita de Estado portuguesa do século XX”. O rei D. Carlos e a rainha D. Amélia desembarcaram nas ilhas do Faial, da Terceira e de São Miguel. Já em 1893, no auge do movimento pela Autonomia dos Açores, corriam rumores (com eco na imprensa micaelense) desta iniciativa do estado português. O objectivo, especulava-se, seria o de inaugurar as comunicações telegráficas entre o Continente e os Açores através do cabo submarino lançado pela companhia inglesa “Telegraph Construction”. E certo é que tal viria a acontecer naquele mesmo ano, mas sem a sonhada presença dos monarcas, ainda que, para o efeito, tivessem sido convidados pela Comissão Distrital de Ponta Delgada. Pensava-se, então, ingenuamente, que aquele prodígio da ciência e da técnica, tirado a ferros, mereceria, na circunstância, presença real com pompa.

D. Carlos e D. Amélia no Faial, naquela que foi considerada “A primeira grande visita de Estado portuguesa do século XX”

No entanto, as motivações eram, sobretudo, de carácter político. Por um lado, a monarquia portuguesa, começando a dar sinais de declínio e impopularidade, precisava de revigorado e inequívoco apoio popular. Por outro, a demonstração da soberania portuguesa exercida sobre as suas parcelas insulares adjacentes ajudava Portugal a posicionar-se perante as potências europeias e americanas no Atlântico, área que crescia em importância estratégica.

Num cenário de contrastes arrepiantes, o rei D. Carlos e a rainha D. Amélia nas Sete Cidades, futura “Vista do Rei”, na ilha de São Miguel, em Julho de 1901

Os autonomistas de antanho, e os vários partidos do regime e anti-regime, como o republicano, apesar de começarem por tecer algumas críticas à eventualidade de uma viagem de soberania do estadista, como ressalta da leitura dos jornais da época, acabam por ver nesta mais vantagens do que desvantagens, uma vez que contribuiria para a afirmação da unidade nacional, bem como para a promoção dos Açores no exterior, o que se afigurava benéfico para o tão almejado desenvolvimento turístico. Apesar disto, um ou outro jornal, sobretudo os de tendência republicana, ainda criticam fortemente o facto de as despesas com a vinda do rei serem suportadas pelo já depauperado cofre açoriano, como é o caso do periódico O Localista, pelo punho de Eugénio Pacheco, ou o de A Persuasão, que relaciona a visita de estado com o efeito que as campanhas autonomistas geravam no “cérebro de cortesãos assustadiços”…

Os aguerridos autonomistas encolheram-se, acocoraram-se perante o soberano e seu séquito de representantes do opressor centralismo. Nos banquetes, nos bailes, nos desfiles, nas exposições comerciais e industriais, nos passeios, tudo o que entre-portas era alvo sistemático das mais duras críticas, de combate político, como as investidas anti-autonómicas ou, por isso mesmo, a situação de rapina e de permanente penúria a que as Juntas Gerais estavam sujeitas foi esquecido.

Bem vistas as coisas, afinal, quem precisava de solidariedade era Sua Majestade. E quem melhor do que o bom povo açoriano, que tão bem sabe receber, para dar uma, ainda que modesta, prova de vida e algum alento a uma Casa Real cada vez mais desacreditada?

E para que tudo corresse na melhor das conformidades, contava a Casa Real com a influência do Presidente do Conselho, o micaelense Hintze Ribeiro, a quem ficou, aliás, a dever-se toda a preparação da visita e o êxito que a mesma veio a constituir em beneficio exclusivo da reanimação do monarca.

Nesse nobilíssimo ano, até alguém chegou a decretar que as festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres fossem adiadas, de Maio para Julho, para que o Rei pudesse integrar a procissão e passear-se pelo Campo de São Francisco. E assim aconteceu!

Quanto aos Açores e aos problemas das suas gentes, com a visita, surpresa das surpresas, tudo ficou na mesma e, em alguns casos, até piorou.

Luís Bastos