Um krátos sem dèmos

A democracia (do grego, dèmos=povo+Krátos=poder), há muito em estado crítico, dá agora sinais de desestruturação em muitos países da Europa e fora dela. Na maioria dos países da UE, as coligações que suportam os governos têm laços frágeis e muitas vezes encerram contradições (aparentemente) insanáveis. As soluções duradouras de governabilidade democrática de outrora – sob lideranças fortes, carismáticas, que garantiam paz e prosperidade (sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial), visando a governação de uma nação como um colectivo coeso, e não a gestão de sectores particulares, como as poderosas corporações das quais depende hoje a sobrevivência dos governos – parecem, definitivamente, remetidas para as páginas da história.

A dispersão de votos e o (não) sentido que, em muitos casos, ela traduz (veja-se, a título de exemplo, o ineditismo a roçar o paradoxo dos resultados das recentes eleições em França) demonstram alheamento, indiferença e frustração dos cidadãos em relação ao desempenho das instituições, nas quais já dificilmente se revêm. Nestas circunstâncias, a aposta nos extremos da oferta partidária parece ser a resposta/protesto que vem ganhando forma e cada vez mais adeptos. Rotineiros, incapazes de soluções inovadoras, descredibilizados e desadaptados das exigências e do sentir das gentes de um tempo novo, os “centrões” fragmentam-se, tornando-se, em alguns países, forças políticas residuais. Sendo que a política também tem horror ao vazio, logo surge a questão que consiste em perceber quem poderá vir a ocupar a vaga. E a resposta é, dramaticamente, previsível…

Jean-Luc Mélenchon e Marine Le Pen, os rostos respectivos da extrema-esquerda e da extrema-direita francesas

Os partidos do “centrão”, tradicionalmente garantes da alternância de poder, sejam eles de “direita” ou de “esquerda”, já não disfarçam o imobilismo que deles se apoderou, enquistaram-se e diluíram as suas identidades, de tal modo que, dificilmente, o cidadão eleitor consegue identificar diferenças que justifiquem uma opção clara de voto.

Em França, os históricos gigantes, o PS e o Gaullismo, eclipsaram-se, foram atirados para as franjas do leque partidário, originando, primeiro, o grande equívoco “macroniano” e, depois, o actual campo minado pela extrema-esquerda e pela extrema-direita, alimentando um horizonte de incerteza quanto a uma solução governamental estável.

E, em Portugal, o que distingue, hoje, o PS do PSD? Não é mais a ideologia ou um projecto “idealizado” para o país. Distinguem-nos os percursos políticos de um passado já mais ou menos longínquo, isto é, as origens históricas, os grupos e identidades sociais, as simpatias por associações, e, muito provavelmente, pelos clubes de futebol e pelas lojas maçónicas. A decisão dos eleitores passou a ter muito mais a ver com a capacidade de os dirigentes políticos gerirem as emoções do eleitorado, cativando-os com distribuição de afectos e vagas promessas. Um político que, presentemente, se apresente ao eleitorado vale mais como um produto digital da comunicação e das “redes” do que pela substância do discurso que é capaz de produzir. Basta ver a obsessão pela contratação de directores de comunicação, assessores de imagem, etc..

Por outro lado, é certo, a globalização da economia e as regras do jogo impostas pela UE, sobretudo financeiras, restringiram, fortemente, o espaço de manobra política no interior dos estados. A UE prescreve uma grelha política, social e económica a que devem submeter-se os estados-membros, uniformizando procedimentos e mantendo apertada vigilância quanto ao cumprimento dos mesmos. A propósito, pena é que já não seja tão rigorosa a atenção para com a necessidade de fazer respeitar e cumprir a “Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia” (Nice, Dezembro de 2000). Percebe-se: se o mesmo zelo com que são seguidas de perto as políticas financeiras dos respectivos estados fosse aplicado ao cumprimento dos direitos fundamentais, provavelmente alguns países já não fariam parte da UE, nem alguns estados (já foram mais) se expressariam de forma tão esfuziante pela recepção de novas candidaturas de adesão…

As ideias que enformavam as mais diversas causas pelas quais os cidadãos lutavam e se mobilizavam, entrincheirando-se no seio dos partidos políticos, que assim lhes conferia cultura política própria, corpo e voz, tendem, pois, a desvanecer-se, dando lugar a “plataformas” e “frentismos”, uma espécie de lojas de conveniência política que servem apenas como meio de aceder ao poder pelo poder. Afinal, bons ou maus, as comunidades humanas não prescindem dos governos. E, desde que não comprometam os padrões fundamentais de bem estar, ou as necessidades do individualismo possessivo reinante, tais arranjos ainda vão contando com o apoio dos cidadãos, embora manchado pelo fenómeno abstencionista. E num cada vez mais acelerado processo de despolitização das sociedades, que abriu portas à “ditadura” tecnocrata, a verdade é que à maioria dos cidadãos tanto se lhe dá.

António Costa, Primeiro Ministro a prazo?

E mesmo no caso em que os partidos logrem alcançar uma confortável maioria de votos, já não é líquido que daí resulte a tal estabilidade propícia a reformas geradoras de progresso. No Reino Unido, a maioria conservadora de Boris Johnson vacila e, em Portugal, Costa tarda em dar provas claras de vontade reformista e mesmo de cumprimento integral da legislatura. A análise da realidade económica e social do país, dos seus graves e crónicos problemas, bem como as formas de abordagem e solução dos mesmos, estão longe de obterem consenso no seio do partido que suporta o governo. Os partidos são também “vítimas”, eles próprios, de instabilidade, neste caso provocada pelo fim da coesão que assegurava um partido a uma só voz, apesar das sempre “saudáveis divergências internas de opinião”, como gostam de apregoar.

Sérgio Sousa Pinto, o Presidente da Comissão Parlamentar dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, cujas ideias, também acerca deste governo, Costa despreza
Alexandra Leitão, uma reminiscência da geringonça, descartada por Costa

O PS de Costa rompeu com a geringonça mas a marca desta heterodoxia permanece no seu interior. Não foi por acaso que o Primeiro-Ministro preferiu rodear-se de incondicionais desgastados do que de políticos competentes e imbuídos de ímpeto reformista. E, também, claro está, porque tal permite a Costa, com a tranquilidade desejável, preparar terreno para ocupar o cargo internacional, na UE ou fora dela, pelo qual tanto anseia (as movimentações nesse sentido, ultimamente, só aos mais distraídos podem passar despercebidas), bem como proceder a uma gradual e pacífica sucessão na continuidade. Esta hipótese ganha robustez se nos lembrarmos de que o primeiro alerta para esta eventualidade foi anunciado ao país pelo Presidente da República, logo ali, a (des)propósito, no acto solene de tomada de posse deste governo.

Quanto à maioria absoluta obtida por António Costa, há que admiti-lo, nem chega a ser uma excepção à regra dos governos instáveis e das coligações improváveis. É antes fruto da clamorosa incompetência e do atavismo que caracterizaram a liderança de então do principal partido da “oposição”.

Luís Bastos