Por Madalena San-Bento
Canto da Maia, o escultor português mais internacional do século XX, era açoriano. E, tendo vivido a maior parte da sua existência longe da terra que foi o seu berço, representado hoje em diversas coleções, públicas e privadas pelo mundo, é, porém, ainda, indissociável da terra onde nasceu.
Mero exemplo, entre miríades de outros – mas um exemplo retumbante, convenhamos.
Deixou-nos um dos maiores legados artísticos e interpretativos de que nos podemos orgulhar – de matriz geradora açoriana – um cenário propiciador (como tantas vezes) dos mais altos voos em paragens estrangeiras.
Inúmeros foram os críticos que já sublinharam, na eloquência das suas composições, uma existência interior subjacente, que é a poética intimista destas ilhas atlânticas.
Muito embora tenha cumprido o amadurecimento do seu génio artístico numa Paris- matriz cultural do mundo entre as duas grandes guerras (parte com 22 anos e só regressa aos 63) esteve sempre presente, no escultor e na obra, esta espécie de selo arquipelágico: lugar aonde, após a longa experiência cosmopolita e de raro êxito para a época, havia de voltar.
É curioso pensar como, mais do que parece em alguma outra parte, estas pequenas ilhas, este universo de muito mar e tão exígua terra, frequentemente anquilosante, se agarram ao espírito dos seus filhos, em qualquer quadrante social, e os carimba de uma marca poderosa, inesquecível, na sua especificidade.
A natureza das ilhas, na verdade, não quarta nem estigmatiza estes seres – é o que temos visto – mas nunca lhes autoriza o esquecimento da sua substância, cores, cheiros alma intrínseca, como se fosse a matéria moldável mais propícia à criação e à formulação de novos cânones, além-fronteiras.
Ao mesmo tempo, qual Ilha dos Amores prometida aos heróis das epopeias, este estranho pedaço de solo permanece a cintilar, chamando de volta com um canto de sereia abandonada, tomando contornos cada vez mais sedutores, a cada dia que se passa, no afastamento…
Na universalidade da arte de Canto da Maia o corpo, apresentado enquanto canal emotivo das ideias, o olhar crítico e, por vezes moralizante, que parte dos conjuntos, as formas que encerram e sintetizam sentimentos, e a expressividade – que vai muito além da gramática escultórica formal – fazem da sua obra amplos e formidáveis discursos, capazes de nos reter horas, frente ao instante captado.
É impressionante imaginar que alguém que alcançou ainda em vida um tão retumbante sucesso na capacidade artística de comunicar, tivesse duvidado da legitimidade do sacrifício e do desapego necessário para o alcançar. E curioso que, vassalos em espírito de um lugar que não nos basta nunca, sintamos quase todos a vertigem desta espécie de entrega, na dor de ser forçoso ter de a deixar.
Em 1912 Canto da Maia, ainda muito jovem, parte dos Açores, onde vivia com a família (já após um curso artístico no continente português) à procura do seu destino em Paris. O ambiente culto e economicamente desafogado em que sempre vivera, permitiam-lhe, de forma nada penosa, enveredar pela carreira que desejava, totalmente dedicada às artes. Esta viagem era pois, a feliz continuação de um percurso escolhido.
No entanto, em novembro deste mesmo ano, escreve a seguinte missiva:
«Novembro de 1912
Meus queridos pais:
É a primeira carta de Paris. Não imaginem que vou descrevê-la. Simplesmente vou tentar dizer o que tenho sentido.
Estou enfim em Paris, neste Paris de que todos falam, que todos desejam, que todos adoram, e ele parece-me merecedor disso. Mas eu ainda não o adoro.
A beleza e a grandeza dos seus edifícios, boulevards e praças eu tenho-a sentido, mas também me fazem sentir energicamente a luta pela vida que é necessário manter num meio destes e esta pergunta vem-me constantemente ao cérebro: vale a pena lutar? Gozar e sofrer esta vida? Não será preferível a vida simples num canto da província tendo o amor da família? Não se goza tanto mas também não se sofre. (…)
Custa-me e é-me muito duro enquanto não me habituar, não criar raízes; por momentos quasi que sinto desejos de deixar tudo e ir viver simplesmente ao pé dos meus. (…)
Tanta coisa de arte, tanta coisa bela, fazem-me pensar. Para que sirvo eu? Que bem faço à humanidade? Para que lhe servem os meus esforços, são o mesmo que uma gota de água no Oceano. (…)”
É um tipo de sofrimento que tem assistido a hordas de emigrantes ao longo da nossa história; aos jovens que em bando continuam a partir na atualidade, para desenhar conquistas em maior horizonte; esteve sempre presente – em gente anódina e em grandes vultos – da mesma forma: dir-se-ia a saudade, a necessidade telúrica que nos iguala, finalmente…
Hoje, parece diferente: já cansa que estejamos cansados; a terra onde se nasce, nunca devia ser vista como um fardo – antes como um amor, para a vida toda. Ou como a alavanca para explorar o mundo, colo possível para o regresso.
Essa terra, da qual nos temos afastado cheios de queixumes, nem parece a nossa.
Madalena San-Bento
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