«Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar». Assim está escrito esse direito fundamental no Artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. No n.º 3 do mesmo Artigo, pode ler-se que «O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria».
Ao que dizem, Portugal tem uma das Constituições mais progressistas dos países que integram o mundo democrático, o que para bem pouco serve quando o troféu não estimula o Estado a cumprir com um dos direitos sociais fundamentais. Não se pode dizer que nada foi feito, mas o que é certo é que estamos muito longe de uma política de habitação capaz de dar resposta a esta cada vez mais premente necessidade da grande maioria dos portugueses. Com cerca de dois milhões de pobres e uma classe média que sufoca em impostos e baixos salários, com 1,5 milhões de famílias a empobrecerem com o disparo das taxas Euribor, e com a inflação que perdura, é Portugal no seu todo que definha e é a esperança de milhões de portugueses numa vida melhor que, dramaticamente, se dissipa.
No sector da habitação, como noutros, a retórica dissimula a realidade. Uma panóplia de programas e medidas avulsas, à mistura com o anúncio de milhões, aparecem tarde e primam pela burocracia e falta de clareza. A intervenção do Estado com vista à “suavização” dos juros do crédito à habitação está longe de se revelar satisfatória para boa parte dos agregados familiares.
Para milhões de portugueses, realizadas as despesas familiares correntes (básicas), praticamente tudo o que lhes sobra é consumido pela renda mensal ao banco ou ao proprietário da casa que habitam. Não obstante, e segundo os indicadores mais recentes, os juros renderam ao conjunto dos principais bancos cerca de 2.000 mil milhões de euros só no primeiro semestre deste ano! Quando, ainda não há muito tempo, os portugueses, com sacrifício, foram forçados a acudir a uma banca à beira do colapso, desta vez, e apesar da folga financeira, longe estamos de algum contributo solidário (por alguns ingenuamente esperado) por parte das instituições bancárias para atenuar a agonia em que muitos portugueses vivem.
E se não deixa de ser meritório que alguns pequenos e polivalentes banqueiros da nossa praça procedam a obras de beneficiação nas instalações dos seus balcões, certamente com o louvável propósito de bem receber os clientes e novos pedidos de crédito, já a atitude, nos tempos que correm, de exibição pública em festins comemorativos, onde o champanhe (ou seria verdelho do Pico?) jorra e roda nas taças erguidas pelos campeões do lucro se afigura dispensável. Porque desrespeitosa e até afrontosa para todos quantos, a muito custo e todos os meses, se esforçam por cumprir com as dívidas contraídas.
O fracasso da política de habitação em Portugal tem como causa próxima a falta de vontade e de coragem políticas dos sucessivos governos deste país para gizar e desenvolver um mercado de arrendamento compatível com as possibilidades económicas dos seus cidadãos. O esforço feito pelas famílias para suportar o crédito para aquisição de casa, muitas vezes ao longo de muitos anos, acaba por as privar da pequena poupança indispensável à concretização de objectivos de vida e outras realizações desejadas e facilmente alcançáveis, não fosse o jugo a que estão sujeitas pelo poder financeiro.
E, como costuma dizer-se, os governos mostram-se fortes com os fracos e fracos com os fortes. E assim se vão mantendo, cedendo a lobbies vários, sobretudo, ao da banca. Num país pobre como é Portugal, que sentido faz que em muitas zonas do seu território mais de 75% das casas existentes sejam de habitação própria?
Embora tendo por referência o todo-poderoso monarca que marca o absolutismo do século XVI, Étienne de La Boétie (1530-1563), um humanista e filósofo francês, autor da famosa obra «Discurso sobre a servidão voluntária» – um autêntico hino à liberdade – preocupava-se com a submissão a que se achavam sujeitos os povos e, mais concretamente, o facto de a aceitarem de bom grado… Interrogava-se, indignado, sobre o fenómeno da aceitação passiva, sem desobediência ou revolta, de um povo sob o jugo dos poderosos que o humilham, decapitando direitos e liberdades, enquanto aqueles vivem no luxo, espalham corrupção, promovem a injustiça social e desacreditam o Estado – «São, pois, os próprios povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem maltratados, pois deixariam de o ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios (…) A liberdade é a única coisa que os homens não desejam, pois se a desejassem bem a alcançariam; como se recusassem fazer esta preciosa conquista por ela ser tão simples de obter (…) Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres (…) Temos, portanto, de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a pontos de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural.»
Estranhamente, ou não, há países, na Europa dos ricos e um pouco por todo o mundo, cujos povos, total ou parcialmente, vivem em estado de servidão ou para lá caminham a passos largos. E não, não é aos milhões de refugiados perseguidos pela fome, pela tirania ou pelas guerras a que agora me refiro, mas sim aos outros todos que aqui vivem, mais perto ou mais longe de nós, e sobre os quais “temos, portanto, de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a pontos de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural”.
Vale a pena ler os alertas de La Boétie, um humanista do século XVI, o melhor amigo de Montaigne, seu contemporâneo.
Luís Bastos
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