Contrastes chocantes e servidão voluntária

La Boétie, França, 1530-1563

Luís Bastos

Dos guerreiros e do descanso da guerreira

1. Quanto mais os ministros deste governo de absoluta maioria guerreiam entre si, defendendo, publicamente, políticas opostas, mais o Primeiro-Ministro reforça o seu poder, que já não é pouco. Julgo até que António Costa consentirá, com algum prazer, estes desaguisados entre pares, fomentando-os, de alguma forma, no velho estilo da República florentina dos finais do século XV, princípios de XVI…

Costa e Silva, ministro da Economia

Enquanto que do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), cujo “padrinho” é o agora ministro da Economia Costa e Silva, pouco se sabe (desconhecendo-se os montantes já executados bem como a sorte que terá levado a prometida “Grande Universidade do Atlântico”), o ministro Medina, das Finanças, zurze no seu colega por este ter andado por aí a falar em baixar impostos. Por outro lado, o truculento ministro das Infraestruturas Santos, senta-se (humildemente) à mesa, vergado por Costa, para discutir com o PSD a localização do novo aeroporto de Lisboa. E, quando volta à baila a privatização da TAP, aguardemos para saber o que o responsável das “Infras” nos tem a dizer sobre o assunto, isto no caso de, chegado o momento, ainda permanecer no cargo de ministro das ditas. Certo, mesmo, é que parece ter-se esfumado o amor de Portugal pela sua “companhia de bandeira”. Ora, se tal se deve a causas relacionadas com a pandemia ou com a guerra na Ucrânia, ou, ainda, por outras já perceptíveis mas ainda não totalmente explícitas, é o que a seu tempo se verá.

O ministro Santos, das Infraestruturas, e Luís Montenegro, líder do PSD

Entretanto, e prosseguindo na hábil estratégia de enfraquecimento do poder individual dos ministros (e de outros “históricos” do PS), Costa, ao escolher e nomear o novo responsável pela pasta da Saúde, cria, simultaneamente, com notório aplauso de Marcelo (que já avaliou a matéria de que se reveste este governo), um novo cargo no âmbito do estatuto do SNS, recentemente aprovado. E, para o novo lugar, é nomeado um CEO para exercer as competências que, obviamente, caberiam ao ministro desde que lhe fossem reconhecidas competências e capacidades para enfrentar o enorme desafio que é resolver os problemas da saúde em Portugal. Mas tal não foi o caso, embora seja para isso que existem os ministros. Se não, estruturas semelhantes à agora formada para “coordenação” do SNS não deixariam de ter lugar noutros ministérios, onde a necessidade urgente de reformas estruturais se encontra, igualmente, na ordem do dia.

Manuel Pizarro, novo ministro da Saúde

Assim, o esvaziamento de poder político do novo responsável pela pasta da saúde que, não obstante, como militante indefectível, aceitou o cargo de bom grado, conduzirá, irremediavelmente, a um conflito de interesses entre organismos que, agudizando-se, fará cair Pizarro ou Araújo (ou até ambos), e a indefinição na saúde permanecerá, arrastando o sector para um perigoso pântano.

2. Marta Temido foi embora fragilizada psicológica e politicamente. Teve o azar ou a sorte de, em vez de dedicar o seu tempo a resolver os problemas do sector e a melhorar o Serviço Nacional de Saúde – que é o que dela se esperava – se envolver, antes, na primeira linha do combate a uma inesperada pandemia que se abateu sobre o país provocada pelo coronavírus.

Marta Temido

O esforço de organização e mobilização de recursos perante um país em suspenso e impreparado para tal avalanche; ser a voz das notícias desagradáveis, diariamente, durante longos meses; o dar a cara, enfim, pela gestão global de uma crise sanitária que logo atingiu todos os outros sectores fundamentais de actividade, públicos e privados, revelou a mulher politicamente competente, lutadora, corajosa e resistente, que procurou servir o seu país dando tudo o que de si era possível. Pode não ter, em devido tempo, acautelado certos aspectos de ordem logística, ou não ter, até, tomado as medidas mais adequadas por qualquer tipo de preconceito ideológico ou outras quaisquer razões.

Todavia, o que me motiva a escrever estas linhas sobre uma ex-ministra que nem tampouco integra a minha área política, ou de especialidade, está longe de constituir qualquer panegírico aos resultados do seu trabalho. Trata-se, sim, de uma necessidade de reconhecimento da política exercida com seriedade e convicção, com políticos empenhados e intelectualmente honestos. A nobreza de um político espelha-se no sentimento do dever de serviço público executado com perseverança, qualidade, e, quantas vezes, com atitude estóica, ainda que debaixo de uma chuva de críticas. E a contestação tanto pode vir dos adversários, como, muito frequentemente, dos compagnons de route… Em democracia é assim, e ainda bem. Que o diga Marta, de quem se espera, agora, no Parlamento, não ceda ao choradinho partidário que pressiona para a defesa acrítica das políticas que se adivinham para o sector que tão bem conhece.

Luís Bastos