Por Viriato Soromenho- Marques
Aliás, cada vez mais as “áreas naturais protegidas” se revelarão como territórios latentes, à espera de investidores. Reservas do capital e não da diversidade ecológica! O número de dias em que ninguém sairá à rua, sob pena de colocar a sua saúde em risco, deverá ter aumentado significativamente, em proporção direta com a perda de praias no litoral, devido à combinação entre erosão costeira e subida do nível médio do mar. Nos oceanos, os plásticos continuarão a crescer, inexoravelmente, até ao ponto em que o seu peso ultrapassará o do total de todas as criaturas marinhas.
O processo movido por seis jovens portugueses, vítimas dos grandes incêndios de 2017, contra Portugal e mais 31 países do Conselho da Europa (ver crónica de 30/09/23), devido à inação desses países no combate às alterações climáticas, não passou o crivo do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em Estrasburgo. A razão para tal não reside na má técnica jurídica dos queixosos, ou numa malévola vontade dos juízes. O motivo é mais fundo: o Direito Internacional Público, nomeadamente ambiental, não se baseia no melhor conhecimento científico sobre a Terra como sistema ecológico vivo e interdependente, continuando refém de um conceito mecanicista de soberania territorial dos Estados, consolidado no século XVII.
Longe de Estrasburgo, as areias dos grandes desertos africanos, com um diâmetro tão fino que entram pelos pulmões adentro, já migraram, sem necessidade de documentação, para as latitudes de Portugal, Espanha e Europa do Sul. Juntamente com as secas crónicas, a rotina das ondas de calor, as cheias súbitas, os minitornados imprevisíveis…
E é apenas o princípio. Um novo normal, em crescimento e agravamento exponencial. A crise global do ambiente e clima deverá atingir um sinistro ponto de rebuçado lá para 2040, quando os primeiros aviões começarem a aterrar no novo aeroporto de Lisboa. Será um elefante tão branco que dispensará qualquer comentário para além do silêncio de muitos, e da vergonha de poucos. Será erguido depois da devastação de uma vasta zona estuarina, protegida por uma lei impotente.
Aliás, cada vez mais as “áreas naturais protegidas” se revelarão como territórios latentes, à espera de investidores. Reservas do capital e não da diversidade ecológica! O número de dias em que ninguém sairá à rua, sob pena de colocar a sua saúde em risco, deverá ter aumentado significativamente, em proporção direta com a perda de praias no litoral, devido à combinação entre erosão costeira e subida do nível médio do mar. Nos oceanos, os plásticos continuarão a crescer, inexoravelmente, até ao ponto em que o seu peso ultrapassará o do total de todas as criaturas marinhas. Então, já teremos as minas de lítio, promovidas por grande empresas e fundos de investimentos, a mais de meio do seu ciclo de vida. Forças de segurança serão destacadas para garantir que os protestos não se transformam em resistência ativa. Solos aráveis terão ficado irremediavelmente perdidos. Ribeiros e lençóis freáticos contaminados. Nichos de biodiversidade perderão a massa crítica mínima, e onde antes verdejava e cantavam as aves, ficará o sulco sombrio deixado pelas máquinas na terra árida e na pedra nua. E para quê? Para a “transição energética”? Para o “crescimento verde”?
É provável que essa Novilíngua, que usurpou, pirateou e intoxicou preocupações reais defendidas por gente séria, já tenha sufocado na sua própria nulidade. Outro linguajar será forjado, mas sem grande imaginação, nem despesa. Em 2050, em vez da miragem da neutralidade carbónica, a OCDE antecipava, para o cenário realista de tudo seguir como de costume, uma concentração infernal de 685 ppmv de CO2 na atmosfera. Quando o futuro talvez pouco mais seja do que chegar ao dia seguinte, para propaganda bastará o novo panem et circenses digital mais elementar.
Enquanto o tsunami do futuro se avoluma, os tambores de guerra continuam a ensurdecer o pouco de racionalidade e de espírito crítico que sobra nesta apática e triste Europa. Ferida de menoridade cognitiva, ética e política.
Viriato Soromenho-Marques
Diário de Notícias, 2024/04/13